VIII

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Terceira parte

O ventilador de teto girava com esforço e Luiz há meses escutava aqueles ruídos provenientes da falta de óleo. Ao percebendo isso, o historiador se sentou espantado em sua cama, mal podendo crer que estava de volta a sua realidade – mas ele não estava sozinho.

– Você! – Luiz apontou enfurecido para João Pestana sentado à beira de sua cama. – Eu vou... Eu vou...!

– Antes que faça qualquer coisa na qual se arrependerá depois – interpôs João serenamente –, acredito que queira umas explicações, estou certo? Pois bem, me acompanhe.

Luiz tremia de raiva. Enfiou-se nas primeiras roupas que encontrou. Aquelas pessoas estavam prestes a morrer... e Helen havia levado um tiro para protegê-lo. João agia como se nada tivesse acontecido.

– Posso ver que além de irritado, você ficou muito mexido com o que viveu.

– E não podia ser diferente – rosnou Luiz em resposta, por uma calçada estreita e vazia. – Você é um ser desprezível, seja lá o que for!

– Espere, então eu sou desprezível? – indagou João e parou na calçada para encarar Luiz firmemente nos olhos. – E se eu disser que tudo o que você passou naquele navio foi apenas um sonho? Ah, ragazzo, eu sabia que você ia fazer essa cara de surpresa. Todos fazem. Para o seu governo, eu posso potencializar o que o seu corpo, coração e mente sentem durante o sonho que eu preparo. Daqui a pouco você se recupera.

"Mistérios à parte, sou um espírito servo de Allister, o deus do pós-vida e eu não me olharia com toda essa descrença depois do que você passou. Me escute. Allister, bem como os outros deuses, é muito ligado emocionalmente aos seres vivos de todo o universo. Ou seja, eles querem o melhor pra vocês."

– Mas o que uma coisa tem a ver com a outra?!

– Ainda não entendeu? A forma que Allister encontrou de ajudar os seres vivos a terem uma eternidade feliz ao lado dele depois da morte, porque existe vida após a morte, é enviando seus servos para fazer com que pessoas más se tornem boas para merecer um pós-vida verdadeiramente feliz.

– Está querendo dizer que sou uma pessoa ruim?! – exclamou Luiz, enfurecido.

– Acho que agora não é mais – João deu de ombros. – Por acaso se lembra lá no navio quando eu disse que te observei? Pois não gostei nada do que eu vi. Enquanto palestrava, você sem perceber atirava nas pessoas aquilo que o seu coração estava cheio. Claro que Allister não ia querer um homem inteligente como você sofrendo pela eternidade por viver da maneira errada, por isso fiz o que eu fiz. A amargura é um caminho destrutivo, meu jovem.

"Olhe ali para aquele morador de rua ao lado da quitanda. Você sempre o menosprezou. Mas no Titanic, você viu e sentiu o valor que uma vida tem. É nítido que aquele morador de rua está afundando depressa em sua miséria e você é um dos únicos barcos pelas proximidades que o percebe, mas se nega a ajudar. Isso lhe parece familiar, Sr. SS Californian?" 

Luiz fora sugado por um vórtice em sua memória. Lembrou-se das pessoas no velório dos seus pais e percebeu no que ironicamente havia se transformado tentando se proteger. Ele passou a ser um homem amargo com tudo e com todos, mas se arrependeu graças, principalmente, aos momentos que tivera com Helen. 

Luiz segurou as lágrimas que lhe tomavam os olhos naquele instante. Entendeu que tudo não passou de um sonho, mas por que se sentia  desmoronar internamente? A resposta veio em instantes.

– Os bons sentimentos estão assumindo um lugar dentro de você – falou João num sorriso amistoso. – Isso é ótimo. Acho que agora só falta você pedir desculpas a sua secretária, que sempre gostou muito de você apesar de como era tratada. Ela enxergava bem o seu vazio, mas sempre foi tímida demais para expressar sua preocupação. Além disso, ela o admira porque você sempre foi forte para se manter lutando apesar do que sente. Percebeu agora o que estava perdendo enquanto trancado em si mesmo? Ah, ah! Não precisa responder.

"Mas se me permite acrescentar uma informação que pode ser do seu interesse, sua secretária é a bisneta da verdadeira Helen Candee que embarcou no Titanic há mais de cem anos. Diferente do seu sonho, a Helen original sobreviveu ao naufrágio e conseguiu realizar tudo o que planejou. Sim, historiador, essa é a mais pura verdade. Ingrid Candee veio para o Brasil com os pais quando era pequena e eu penso que essa jovem merece muito uma oportunidade de ser feliz com alguém, se é que me entende. Quem sabe essa também não é a sua oportunidade para ser feliz?"

Luiz deixou então que as lágrimas rolassem de vez por sua face. João Pestana nunca mais foi visto por ele depois daquele dia. O historiador não foi para o trabalho naquela manhã e teve muito no que refletir. Desejou reavaliar conceitos, não pelo medo do que aconteceria depois de sua morte, mas por não querer permanecer submerso na própria amargura.

Um homem renovado começou a surgir. O filho do historiador estava feliz com as visíveis mudanças do pai. Luiz pediu perdão e desejou felicidades sinceras a ex-mulher pelo seu novo noivado, quando por fim decidiu também seguir em frente.

Luiz se aproximou de sua secretaria. Ela nunca mais foi maltratada pelo chefe. E para a surpresa geral, Ingrid e o historiador se casaram nove meses depois do evento causado por João Pestana – que, com o tempo, havia sido apagado das memórias do historiador. 

Luiz se permitiu amar e nunca mais precisou usar um cubo mágico em sua vida. Ele passou a respirar felicidade e aprendeu a levar esse mesmo sentimento a todo aquele que precisava.

O navio dos sonhosOnde histórias criam vida. Descubra agora