Lívia

0 1 0
                                    

Conheci o João V. quando tínhamos sete anos e nossas professoras resolveram juntar as salas para que houvesse alunos suficientes para compor pares para a quadrilha da festa junina do colégio. Eu, como sempre, nunca fui boa em arrumar pares e por isso acabei tendo que dançar com outro aluno sem companhia: o João Vicente, mais conhecido por seus colegas como Gordo, da outra turma.

O pequeno João V. não era simplesmente gorduchinho. Ele era enorme. Tão gordo que fiquei com medo que ele me engolisse se ficasse com fome durante a dança. (Eu sei, eu era uma criança maldosa, mas que criança não é?)

Apesar dos meus receios, eu dancei com o Gordo na quadrilha. Fiquei surpresa ao contatar que, apesar de gordo, ele era bem simpático e parecia uma pessoa legal. (Eu sei. EU ERA REALMENTE UMA GAROTINHA PRECONCEITUOSA. Não me orgulho, ok?)

Acredito que eu e o Gordo poderíamos ter nos tornado grandes amigos se não fosse pelo apelido que recebi de alguns dos meninos, entre eles o Matheus, que implicavam com o João V.: Namorada do Gordo.

Como todos devem saber, a última coisa que uma menina de sete anos precisa é ter sua ilustre reputação manchada por um apelido como aquele. Afastei-me do Gordo sem cerimônias e sofri por um bom tempo até que o apelido finalmente foi esquecido.

Três anos depois daquilo, o Matheus se tornaria o único e melhor amigo do Gordo. Esta foi uma das raríssimas atitudes do Matheus que me fizeram admirá-lo. Apesar de querer muito, fui medrosa demais para tentar entrar em contato com o Gordo novamente. Sentia pena por ver uma pessoa tão legal passando por aquilo, mas ela era insuficiente para que eu me arriscasse a voltar a ser a Namorada do Gordo.

Foi há mais ou menos quatro anos atrás que começamos a nos ver com mais frequência, mesmo sem trocarmos uma única palavra. Tudo por causa do interesse que o Matheus adquiriu pela minha irmã. E ele não era o único. Diferente de mim, que sempre tive cabelos e olhos escuros e sem graça, a Maya sempre foi loira de olhos azuis com corpo e rosto de boneca Barbie.

Maya nunca demonstrou interesse por aquele garoto magrelo e esquisito que o Matheus era, mas não o afastou, pois gostava de ser paparicada por ele e gostava mais ainda de poder ficar perto o João V. que, depois de emagrecer consideravelmente, ficava mais bonito a cada dia que passava e sempre andava ao lado do Matheus.

Um dia, cansado de ser iludido pela minha irmã, o Matheus veio a minha procura, pedindo conselhos para conquistá-la. Já cansada de ficar no meio daquele triângulo amoroso ridículo e das exigências do Matheus para que o ajudasse, contei tudo para ele e disse que minha irmã era linda demais para um cara como ele. (Admito, também fui uma adolescente cruel e preconceituosa). Acho que foi ali que nosso ódio mútuo nasceu.

Dois anos, muita prática esportiva e muitos cremes para espinha depois, o Matheus deixou de ser tão desinteressante aos olhos de Maya. Constantemente ela me pedia informações sobre ele, principalmente depois de minha transferência para a sala dele quando descobri que o Cauê e o Enzo, também conhecidos como os Pragas do colégio, haviam repetido o ano e ficariam na minha antiga sala.

O dia em que os dois finalmente deram início ao relacionamento deles foi um dia ao mesmo tempo bom e ruim para mim. Ruim, obviamente, porque o Matheus passou a ser um integrante mais presente da minha vida e bom porque finalmente os meus sentimentos pelo João V. desabrocharam como uma flor em dia de sol (Sou brega mesmo. Me julguem!). Este dia foi tão perfeito (tirando o incidente que acabou acarretando em minha suspensão, claro) que merece ser lembrado detalhadamente:

Eu estava sentada no auditório ao lado da Sophi e da Dora esperando o início da palestra que seria dada para o nono ano e o ensino médio, quando Maya apareceu implorando que me sentasse junto com ela e o Matheus para dar apoio moral enquanto ela tentava seduzi-lo. Depois de muitos pedidos desesperados, aceitei com relutância e sentei ao lado do João V., pois não havia lugar vago próximo à minha irmã.

Não demorou muito para que os dois ignorassem a presença de todos ao redor e entrassem no mundinho deles do qual reles mortais como eu e o João Vicente não fazíamos parte.

Eu estava muito concentrada fingindo ver algo interessante no meu celular enquanto a palestra não começava quando o João V. anunciou que iria ao banheiro. Que gênio! Como eu não havia pensado naquilo antes? Pouco depois de ele sair, eu também fugi para fora do auditório sem me dar ao trabalho de dizer para o novo casalzinho aonde iria. Eles nem sequer iriam escutar se eu dissesse.

Encontrei o João V. encostado à porta do auditório. Fiquei ao lado dele sem dizer uma única palavra.

- Também te incomoda? – ele perguntou de repente. Ao ver minha incompreensão, prosseguiu. – Sentir que está atrapalhando o namoro dos dois?

- Tecnicamente, eu fui convidada a me sentar com eles. – respondi, sem encará-lo.

- E eu estava sentado lá bem antes dos dois, mas mesmo assim...

- É estranho.

- É.

Suspirei enquanto via pela janela do corredor as folhas das árvores balançando mais adiante. Estava acostumada há muito tempo a ver minha irmã mais nova sempre com um namorado novo enquanto eu ficava sozinha sonhando com um príncipe que seria muito mais bonito, inteligente e legal que todos os moleques imaturos que eu conhecia no colégio.

- Você fez seu trabalho de matemática? – João V. mudou bruscamente de assunto.

- Não. – menti. Provavelmente ele era um daqueles garotos que achavam que eu era inteligente por causa do meu jeito retraído. Só aquela semana, três pessoas tinham tentado me convencer a emprestar o meu trabalho para que copiassem na cara de pau.

- Terminei ontem. – ele respondeu de modo orgulhoso. – Tive que ir à igreja logo depois para me confessar e pedir perdão por todas as pragas que eu roguei para o professor enquanto o fazia. – riu.

Eu também ri, porém, foi impossível evitar perguntá-lo o motivo de estar falando sobre aquilo comigo.

Foi naquele momento, bem naquele momento, que tudo começou. Não posso explicar o motivo e o porquê dele surgir tão de repente. Tudo o que o João V. fez foi virar o rosto para mim enquanto passava os dedos pelo seu cabelo meio comprido, sorrir e dizer:

- Desculpe.

Simplesmente complicado. Como um simples gesto pode ser capaz de prender uma pessoa que você conhece há anos na sua memória de maneira tão definitiva?

- Sou péssimo em encontrar assuntos para não deixar a conversa morrer. – prosseguiu. – Acabo mudando a ordem das coisas e quebrando a lógica. Por falar em quebra de lógica, você já provou o novo suco de uva da cantina?

Procurei nele algum sinal de que estivesse brincando comigo, mas ele parecia sério. Não me lembrava de nossas conversas durante o ensaio da quadrilha terem sido tão sem sentido. Eu deveria arrumar uma desculpa qualquer para uma retirada estratégica daquela conversa típica de um manicômio, entretanto, ele havia acendido uma luzinha amarela em mim que eu não estava disposta a apagar até entender direito o que ela era.

- Você é meio louco, não é? – perguntei.

O ex-Gordo soltou uma gargalhada deliciosa que mais parecia uma melodia do que qualquer outra coisa. Eu poderia passar o dia todo escutando aquele som gostoso sem parar. A luzinha amarela dentro de mim ficou laranja.

- Talvez um pouco. – ele respondeu.

Para minha tristeza, pouco tempo depois o palestrante chegou e mandou que entrássemos. Ao atravessar a porta dei de cara com o Matheus e a Maya aos beijos enquanto uma multidão de alunos e até alguns professores aplaudiam.

- Acho que não é o melhor momento para ficarmos ao lado deles. – ele cochichou ao meu ouvido. – Onde você estava sentada antes?

Apontei em direção à cadeira vazia ao lado de Sophi. João V. colocou a mão esquerda nas minhas costas, o que causou uma onda de calor pelo meu corpo, e me guiou até lá.

Uma Sophi perplexa foi puxada por uma Dora bastante sorridente para a outra cadeira vazia ao seu lado, permitindo que eu e o meu novo amigo sentássemos juntos. As conversas paralelas que tivemos entre algumas longas pausas do palestrante para tomar água foram as mais loucas e sem sentido que eu havia tido em toda a minha vida. Cada assunto esquisito e novo sobre o qual o João V. insistia em começar a falar parecia muito mais interessante contado por ele do que deveria ser na voz de outros.

Foi então que a luzinha laranja, que antes era amarela, ficou vermelha.

Almas GêmeasOnde histórias criam vida. Descubra agora