teu olhar castanho-claro que me olhava naquela noite de inverno naquele quarto pouco familiar naquele silêncio confortável depois de termos bebido doses demais daquele cântaro de uísque meio vagabundo parecia ultrapassar coisas tangíveis como pele carne e ossos e o teu rosto de beleza antagônica às banalidades que cruzam a vida pedestre me parecia calmo e impassível e foi lá quando eu pensei meu deus como eu queria te dizer cada coisa bonita cada coisa aleatória mas pra isso ia precisar de coragem e nós dois sempre soubemos bem que isso foi algo que eu nunca tive mas se eu tivesse eu teria te falado tanta tanta coisa eu teria te falado a verdade até ela se tornar em algo nauseante e tedioso eu teria te falado que só algumas coisas sobrevivem e que nós provavelmente não íamos ser uma delas teria te falado que eu preciso de um desastre pra continuar escrevendo e tu sempre foi um pouco catastrófico demais não é mesmo moreno
tu apenas ia me dar um sorriso tímido e me dizer de como é melancólico ter que existir nessa cidade grandechuvosatriste e aí tu ia me jogar um olhar meio inquieto meio emergencial meio fugitivo e eu ia saber que algo aqui ia escorrer pelas nossas mãos como areia porque sempre vão ter monstros maiores do que nós dois e tudo bem porque a gente nunca foi ensinado a lidar com o que vem depois daquela ternura maldita que a gente sentia no começo aquela que as pessoas nunca entenderiam e eu quase nunca sei falar disso e aí só me resta a certeza da tua indiferença gloriosa mas olha pra mim a gente sempre fez tanto sentido meu amor mas nem sempre fazer sentido é suficiente mas tu foi tu foi por mais que isso caia no teu esquecimento por mais que a gente conviva com o gosto amargo do não dito preso na garganta tá tudo bem meu amor vem cá acho que ainda dá tempo de te ler aquele poema que eu te escrevi aquele lá que fala de janeiro e dos punhais que tu tem nos olhos e de como tem algumas coisas tão lindas que se reduzem a frases frias trocadas num bar qualquer
tudo bem vem cá a cidade hoje à noite tá vazia e agora chegou a hora do adeus que parece nunca ter existido
chegou a hora pode ir moreno tá tudo bem
pelo menos tu ainda cabe nos silêncios
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tudo o que a boca não diz
Poesía[um tributo a todas as coisas que me fazem querer cuspir sangue e chamar isso de poesia]