1. Novas grandes amigas

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— Droga.

Jessica estava atrasada. Era amiga do patrão mas sabia de seus limites. Culpava seu celular por não ter gritado o alarme o suficiente para fazê-la acordar, culpava o clima meio frio que lhe deu vontade de ficar na cama por mais tempo, culpava até a cama por ficar ainda mais confortável naquela manhã. Mas sabia que a culpa era sua.

Ela tem tido problemas com sono desde o dia do pior pesadelo que já tivera. Mesmo as corridas não surtiram efeito. Ela estava acabada. Passava o dia com a mente ocupada, mas era só se deitar na cama e as lembranças voltavam. Foi tudo tão real que, com um pouco de concentração, podia sentir o cheiro, ouvir a voz e chorar de novo.

Já estava pronta para mais um dia de trabalho, mas as chaves da confeitaria resolveram sumir. Estava bagunçando suas roupas na esperança de achá-las entre uma camisa e outra quando, na segunda gaveta de sua cômoda, encontrou o impossível.

Os olhos arregalados e a boca trêmula mostravam o seu espanto e medo. Fechou a gaveta rapidamente e subiu em sua cama, abraçando os joelhos como uma criança assustada e indefesa. Como diabos aquilo foi parar ali?, se perguntava. Alguns minutos depois ela decidiu encarar. Era uma mulher, adulta e corajosa, aquilo era apenas um livro e ela estava no mundo real, nada de fogo ou aparições de sua mãe aconteceria ali. Ao menos era isso que tentava se convencer enquanto abria a gaveta outra vez.

Pegou o livro com cuidado e sentou no chão. Encarou-o por vários segundos, esperando que algo acontecesse, que ele pegasse fogo. Abriu-o e folheou as páginas. Não era um livro, era um caderno sem pauta, em branco. Apesar do aspecto antigo, estava novinho em folha. Isso é para quê? Uma espécie de diário? Que diabos eu escreveria sobre o meu dia?, Jessica perguntava, talvez na esperança de que sua mãe respondesse. Afinal, o presente era dela. Rosa nunca daria um ponto sem nó, nunca seria carinhosa sem que pensasse no que queria. Jessica gostava dos momentos raros de afeto com sua mãe, mas tinha medo do que teria depois.

Fechou-o e encarou a capa outra vez. Estava empoeirado como se lembrava. Decidiu não pensar muito e apenas colocou a mão sobre a capa, esfregando e tirando o excesso de poeira como fez no pesadelo. Dessa vez sua mão não ardeu de imediato, mas aos poucos ela percebeu que o caderno esquentava. Sem pensar duas vezes, tratou de se afastar do objeto e, diferente do que pensou, conseguiu jogá-lo longe.

O caderno bateu na parede do outro lado do quarto e caiu no chão, fechado, a fumaça escapando dele. Tão rápido quanto se acendeu, o fogo apagou-se. A mente de Jessica gritava alerta! Alerta!, mas foi ignorada. Pegou o caderno outra vez, notando que ainda estava quente, mas não de um jeito insuportável, e viu que, apesar das chamas, o objeto estava do mesmo jeito de antes. Incrível! As cinzas decoravam as páginas, e em uma delas o rastro do fogo formava letras agarradas umas nas outras, arredondadas, assim como Jessica escreve:

Hoje eu conheci o motivo dos meus sentimentos mais confusos – leu e releu até rir sozinha. Era como se ela tivesse pegado uma caneta em chamas e escrito aquilo. Poderia passar o dia encarando aquele caderno como se fosse um bicho de sete cabeças, o diabo ou a sua mãe - dá no mesmo - mas tinha que trabalhar.

•••

Jessica já tinha aberto a loja, arrumado as posições das mesas, limpado as cadeiras e ligado todos os equipamentos quando Arthur chegou, acompanhado de uma garota alta, branca e serena:

Caderno das cinzasOnde histórias criam vida. Descubra agora