Prólogo

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Jessica ofegava.

O horário não era muito conveniente para corridas mas ela tinha adotado essa prática para relaxar sempre que o fervor de sua mente se tornava insuportável. A garota corria pelos arredores de seu prédio há quase uma hora, e o ponteiro do relógio de pulso já apontava para as três da manhã. Naquele dia a corrida não tinha um motivo especial. Seu trabalho não é tão estressante ao mesmo tempo que todo dia é sufocante para ela. De todo jeito, a adrenalina faz bem à sua mente e as corridas têm sido cada vez mais frequentes.

No caminho de volta ao seu prédio, as luzes se apagarem de repente. Parecia que toda a cidade tinha se desligado. O pouco que conseguia enxergar era iluminado pela lua. O susto foi grande mas tentou pensar com clareza. Desconfiava que algo estava errado desde o início, mas não é como se alguma coisa em sua vida estivesse totalmente certa.

Com as ruas num breu, seus outros sentidos se aguçaram. Ela podia sentir suas veias pulsarem e ouvir seus batimentos cardíacos acelerados. Voltou a andar, mais confiante e cautelosa. Está tudo bem, está tudo bem, repetia para si mesmo. Passado alguns minutos e alcançado poucos metros, seus passos vacilantes já estavam ritmados e sua respiração tranquila, até que uma voz a fez prender o ar outra vez:

Diess...

Seus olhos se arregalaram de imediato, tentando enxergar algo ao seu redor naquela escuridão, mas nada conseguiu. Respirou fundo buscando calma, mas um fedor invadiu suas narinas e ela se assustou ainda mais. Era um odor de fumaça e alguma coisa podre, mas, se prestasse bem atenção, Jessica podia perceber o cheiro de um perfume doce, tão bem conhecido por ela a ponto de lhe causar náuseas. A garota quase chorou naquele instante, acelerando seus passos. Suas pernas tremiam, o choro não a deixava respirar regularmente e ela sentia seus pulmões queimarem enquanto corria.

— Diess... – era uma voz arrastada, quase morta, mais assombrosa do que se lembrava. Afinal, era de uma morta, era de sua mãe!

De algum jeito Jessica conseguiu enxergar o portão de seu prédio, mais estranho ainda foi ter o aberto com facilidade. Ao menos o elevador continuava com defeito, ela não tinha certeza também. Não tinha tempo para tentativas pois o cheiro se tornava mais forte a cada segundo e isso significa que seja lá quem estiver a perseguindo estava próximo, então correu para as escadas. Ela subiu os degraus de dois em dois, aos tropeços, com a visão embaçada por lágrimas.

Nunca imaginou passar por aquilo, ouvir a mesma voz, sentir aquele cheiro outra vez. Talvez seja mais uma de suas alucinações, mas não tinha coragem de olhar para trás para confirmar. A porta do seu apartamento estava aberta, mais uma coisa estranha que lhe fazia se questionar se aquilo realmente estava acontecendo.

Avançou na porta e a trancou assim que entrou, jogando suas costas na mesma ainda de olhos fechados. Soltou o ar devagar, permitindo-se respirar novamente. O fedor chegou aos poucos, fazendo Jessica quase choramingar como um bebê.

— Diess – a voz entrava na sua mente, tão ácido que achou que seus ouvidos sangrariam. As lágrimas não cessavam, Jessica estava chorando como a tempos não fazia. Era esse o efeito de sua mãe sobre si e, secretamente, ela sentia falta disso. — Não vai cumprimentar sua mãe, Diess? – O som do arrastar do "s", parecido com de uma cobra, arrepiou todo o seu corpo e sua única resposta foi um soluço. — Tudo bem, eu já imaginava – sua voz estava mais arrastada, o que antes era sensual, agora soava mórbido. É claro, ela está morta!, sua mente gritou. No intervalo de cada frase o silêncio era substituído por alguns ruídos, como se fossem murmúrios, que ela não entendia e nem se esforçava para isso. — Desculpe-me pelo jeito da visita. Vim te trazer um presente – a respiração audível da garota não impedia que a voz de Rosa fosse ouvida. Era como se as palavras soassem dentro de sua cabeça, reproduzindo um eco que fazia as frases durarem mais que o necessário. — Espero que goste, Diess.

Uma pressão ainda maior fez Jessica se assustar, prendendo o ar com tanta força que achou que nunca mais voltaria a respirar. Ela não tinha aberto os olhos em momento algum, e não seria agora que teria coragem para isso. Sentiu um vento soprar-lhe o rosto e o fedor se dispersar aos poucos. Não se sabe por quanto tempo Jessica manteve-se estática, mas só ousou se mexer quando teve certeza de que estava sozinha outra vez.

Com o coração a mil e a respiração ofegante, permitiu-se enxergar novamente, passando os olhos por todo o cômodo. Tudo estava no lugar. As paredes amareladas, os móveis empoeirados e descascando e uma pequena televisão. Um sofá de segunda mão e uma mesinha comprada na mesma loja. Um copo sujo deixado pela manhã e um livro...

Um livro?

Jessica nunca teve o hábito de leitura e nem tinha dinheiro para encher sua estante. Ler seria bem melhor do que correr nas madrugadas, encontrar a sua mãe e quase ter um ataque cardíaco. Aquele livro não era seu. Ou seria, se o presente de sua mãe for real.

Passo por passo, levou um tempo maior que o necessário para sentar no sofá. Em alerta, se vigiava para confirmar que estava sozinha. E estava. Respirou fundo tentando sentir algo parecido com aquele fedor horripilante, mas nada veio. Estava segura. Vacilante, trouxe para seu colo o objeto empoeirado como tudo em sua casa. Sentiu sua palma arder quando tocou a capa para tirar o excesso de pó. O livro, então, começou a brilhar. Jessica tentou soltá-lo mas ele parecia grudado em suas mãos. O fogo cresceu e tomou conta não só do livro, mas também de suas mãos, seus braços, queimando seu corpo.

Ela se debatia mas o livro não se desgrudava, gritava mas ninguém lhe ouvia. Seus pulmões queimavam, dessa vez, literalmente.

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