Entremundos

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Sente-se Santi,

Eu vou te contar uma história e talvez você entenda porquê eu te protejo tanto desse mundo. No meu dia-a-dia eu vejo muitas pessoas, porém eu tenho uma condição especial que faz de mim uma pessoa peculiar — não dá para saber se essas pessoas estão vivas ou mortas.

É isso mesmo que você ouviu — eu vejo gente morta — e para completar, eles andam por aí como se estivessem vivos. Alguns nem sabem que morreram e alguns pensam que é a minha função contar isso a eles e guiá-los para o Além.

Eu sempre me perguntei o seguinte: Se há um Além, porque essas almas continuam aqui? E essa pergunta ecoava sem resposta na minha cabeça desde o meu aniversário de dez anos, quando eu vi o primeiro "fantasma".

Eu nunca falei sobre esse "dom" com ninguém e para ser sincero nunca tive ninguém a quem gostaria de conversar sobre isso. Eu cresci em um orfanato onde sequer me deram um nome. Era chamado de garoto, como todos os outros e talvez por ser "esquisito" nunca fui adotado.

Então comecei a me chamar de Cole Haley depois que assisti ao filme O Sexto Sentido. E já que imagino que não entendeu a referência, eu irei explicar: Esse nome é a junção do nome do personagem que via espíritos e do ator que o interpretou.

Também não falava com ninguém sobre o que via, porque fui alertado sobre o que poderia acontecer comigo se descobrissem essa minha "loucura". Diego, meu único amigo, que inclusive estava morto, me contou que levavam pessoas como eu para hospitais de loucos e que os mantinham sedados o tempo todo.

Por essas questões eu guardava isso só para mim. A minha vontade sempre foi de ser normal e isso me levou a me drogar compulsivamente na adolescência, sendo expulso de diversos abrigos e internado em diversas clínicas, tudo para fugir dos fantasmas que via e de sua realidade medíocre também.

Certa vez, após um longo período de sobriedade, eu me vi novamente em meio aos espíritos que vagavam pela clínica onde estava internado. Muitos viciados que morreram de overdose antes que pudessem ter algum tratamento, alguns funcionários que ainda pensavam que trabalhavam ali e alguns espíritos que apenas vagavam sem rumo.

Era meu aniversário e eu devia estar fazendo uns dezenove anos, ou mais. Não fazia ideia da minha idade, só sabia que fazia aniversário no dia trinta e um de outubro, aliás até hoje eu penso que essa data é uma espécie de "trollagem" da secretaria do orfanato, afinal colocar o garoto estranho para fazer aniversário no dia das bruxas chega a ser cômico.
Tinham anunciado meu aniversário durante a terapia em grupo, mas como eu nunca falava nada lá, ganhei apenas um "parabéns" em coro e sem empolgação. Como sempre, ela estava lá, sem dizer nada também, apenas ia e ficava até o final talvez para assinar a presença, assim como eu fazia.

Ela chamava atenção por sua pele pálida, tão branca que criava um forte contraste com seus cabelos intensamente negros e pela primeira vez desde que começamos a ir nas sessões, sorriu para mim. Eu não sabia seu nome, pois somente os que falavam durante as sessões tinham os nomes ditos lá. Talvez devia chamá-la para conversar, afinal ela era "estranha" como eu, mas não chamei.

Mais tarde nesse mesmo dia enquanto tomava sol no jardim e lia um livro qualquer, ouvi uma voz desconhecida perguntando: "Prefere que eu o chame de Cole ou de Haley?" E instintivamente, sem tirar os olhos do livro, eu respondi: "Prefiro que não me chame!", Mas ao levantar os olhos eu vi que era ela.

Mesmo após a minha resposta, ela sorria para mim e estendia a mão em cumprimento, sem se importar com a minha ignorância e não era um sorriso qualquer, era algo angelical.

Depois de pedir perdão pelo jeito como a tratei, eu toquei em sua mão e uma descarga elétrica pareceu percorrer todo o meu corpo. Aquele sorriso e a voz doce que me disse que seu nome era Rose Flores, me encantaram de uma forma que eu não sei explicar e o dia com ela foi maravilhoso e a noite ainda melhor, mas você é muito novo para ouvir sobre isso.

Os dois dias e duas noites seguintes foram ainda melhores e nesses momentos que passamos juntos, ela me fez esquecer de tudo, drogas, álcool e até da vontade que eu tinha de fugir dali e de todo o resto, mas depois de mais uma noite incrível, eu acordei e ela não estava mais lá.

Procurei em todos os registros da clínica, mas não achei sinal algum de Rose Flores e depois de passar os próximos meses forçando a internação e fugir de várias clínicas só para talvez encontrá-la em alguma delas, eu cheguei a conclusão de que ela teria me dado um nome falso e que nossos momentos juntos não tiveram a mesma importância para ela como tiveram para mim.
Muitos meses depois, enquanto tomava sol no jardim de outra clínica e pensava em mais uma fuga, uma senhora se aproximou e se sentou ao meu lado. Ela usava um uniforme de enfermeira e sorria para mim de maneira simpática como se já me conhecesse há muito tempo.

"É tão bom vê-lo assim já crescido meu rapaz" ela me disse após dar uma boa olhada em mim. "Quantos anos têm, dezenove ou vinte? Você é um verdadeiro milagre, sabia?"

Eu não fazia ideia do que ela estava falando, mas resolvi escutar o que ela tinha a dizer. Eu disse que ela estava me confundindo com alguém, mas ela insistiu dizendo que conheceu a minha mãe e o que me disse em seguida mudou de vez a minha vida.

A minha mãe reencontrou o meu pai na festa do dia dos mortos, depois de se separarem na infância. Ele não sabia, mas ela estava morta e tinha aproveitado que a passagem entre os dois mundos estava aberta para poder encarnar novamente. A paixão entre eles foi fulminante, mas era proibido para um encarnado ter relações com um vivo e ela foi proibida de voltar ao mundo.

A situação dela piorou quando o inconcebível aconteceu e a sua encarnação temporária engravidou. Como a encarnação era permitida apenas por três dias durante as festividades do dia dos mortos, mas ela não podia descartar aquela vida que estava se formando, permitiram que ela ficasse no mundo durante a gestação, mas a obrigaram a se afastar do meu pai.

Ela o procurou para contar-lhe tudo, na esperança que ele entendesse sua situação, mas a justiça espiritual é implacável nas regras e por saber sobre algo que não lhe era permitido saber, ele foi punido e seu espírito foi levado sem permissão para voltar nas aberturas da passagem.

A senhora que me disse se chamar Yolanda me contou que depois que eu nasci, a minha mãe também foi proibida de encarnar novamente, por isso eu fiquei em um orfanato. No final de todo esse relato ela me disse o porquê de estar me falando tudo aquilo — ela era conhecida também como Santa Muerte e me contou sobre o que eu tinha feito sem saber.
Rosa, a mulher que eu procurava pelas clínicas de reabilitação, era na verdade uma encarnada e a nossa relação havia sido repudiada pelos espíritos superiores, porém, como eu era em parte um deles, a Santa Muerte se interessou pelo nosso caso e decidiu que eu deveria saber e deveria decidir qual seria o destino dela...

— Espere um pouco, pai! Então é por isso que eu só vejo minha mãe nas comemorações do dia dos mortos?

— Exatamente, Santi!

— E o senhor acha que eu terei os mesmos dons que o senhor?

— É bem provável que sim, meu filho!

— Pois será muito bom se eu tiver esses dons pai — o pequenino disse com os olhos cheios de esperança —, assim eu poderei ver a mamãe todos os dias!

— Pois será muito bom se eu tiver esses dons pai — o pequenino disse com os olhos cheios de esperança —, assim eu poderei ver a mamãe todos os dias!

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