O toque da campainha sempre foi um som inesperado, que podia assustar ou chatear a dona da casa, dependendo se ela sabia que vinha uma visita ou não. Afinal, mesmo quando se esperava por alguém, não se tinha exatamente certeza de em que momento a pessoa iria chegar, a não ser que viessem de carro e o barulho do automóvel advertisse a moradora. Diferente de todas as outras pessoas, Luna sempre ansiou pelo toque da campainha.
Antes, o som metálico e áspero anunciava a chegada da avó Amelia. A bondosa senhora era divertida e falava sem parar, algo que Luna apreciava muito por ser fã de suas histórias. Com o tempo, vovó Amelia se tornou sua melhor amiga e confidente. Para ela, podia falar sobre seus medos e inseguranças, sobre seus sonhos e gostos. Era tão diferente de sua mãe.
Viver na casa dos Brown foi o que Luna gostava de chamar de "kamikaze das emoções". Seus pais eram amorosos e gentis na metade do tempo e, na outra metade, eram desagradáveis e frios. Não só um com o outro, mas com ela também. Aliás, com ela principalmente. Luna aprendeu a aproveitar os momentos bons e a se esconder nos momentos ruins — odiava ouvir que eles só estavam juntos por culpa dela, o maior erro da vida deles. A jovem se esquivou tanto daquelas palavras que passou a realmente esquecê-las, como se apagasse uma parte de sua memória todos os dias.
A única lembrança que tinha dos dias depois que os pais começavam a brigar era a história que sua mãe lhe contava sobre um homem mentiroso e rude que a tinha rejeitado e a enviado para os braços de seu pai. Helena dizia que ele a tinha abandonado, mesmo a amando, pois não acreditava em finais felizes.
Luna só foi entender realmente a história quando sua avó Amelia começou a contar uma outra versão. Por isso Luna gostava tanto das visitas da avó, pois até mesmo a história que ficava na mente de Luna depois das brigas dos pais eram transformadas em fantasia e em alegria.
Vovó Amelia contava-lhe sobre um homem amistoso e atento que perdeu a amizade de Helena sem querer, simplesmente porque não sentia por ela o que ela queria que ele sentisse. Nas histórias da avó, Luna via alguém que poderia ser seu amigo quando não pudesse contar com Amelia.
Enquanto crescia, esse personagem das histórias, tanto de sua mãe quanto de sua avó, tornou-se um empecilho, um alguém que transformava as tardes divertidas com vovó Amelia em tardes de brigas entre a senhora e Helena, assim como eram as tardes com seus pais. Luna quase o desprezou, quase o odiou.
Estava ajudando Amelia a limpar o porão quando achou uma caixa cheia de diários muito antigos, com páginas amareladas e caligrafia bonita, mas borradas pelas manchas do tempo e comidas pelas traças. Só conseguiu pegar um dos cadernos sem que a avó percebesse. Levou para casa e demorou três meses para decifrar o que estava escrito. Quando finalmente o fez, descobriu que não poderia odiar o homem das histórias, pois ele também estava constantemente sofrendo.
Depois disso, exigiu que a avó lhe contasse tudo o que poderia saber. A partir daí, passou a vê-lo com outros olhos. Um homem que sacrificava a paz eterna para ajudar um amigo, um homem que escolhia sofrer em vez de causar sofrimento, um homem que preferia ficar sozinho a causar solidão. A partir daquele momento, Luna desejou conhecê-lo. Não pelas histórias, mas por ele mesmo. E ela desejou que pudesse dar a ele tudo o que tinha deixado para trás.
Agora, Luna estava ansiosa pelo som da campainha de novo. Depois de uma vida inteira, ela finalmente teria a chance de fazer o que desejou por, pelo menos, 10 anos.
Quando finalmente tocou naquela manhã, a campainha parecia que estava conectada ao cérebro de Luna, lançando comandos específicos e rápidos por todo seu corpo, acelerando seu coração e fazendo-a pular da cadeira e praticamente correr até a porta.
A sensação que teve quando removeu a barreira que a impedia de ver o visitante foi totalmente diferente de quando recebia a avó. Engoliu em seco quando o viu, sentindo sua garganta apertar e as borboletas do seu estômago fazerem festa. Quando ele esboçou o início de um sorriso, Luna pensou que teria que ir ao médico para saber se era possível que seu coração errasse as batidas daquele jeito.
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O véu que nos separa (Degustação)
RomanceDois séculos e meio... Jean Baptiste de Noyan morreu em 1769 após receber sentença de morte por ser um dos líderes de uma Rebelião em Louisiana. Mas sua verdadeira condenação foi proferida uma semana antes de sua morte, quando fez uma promessa para...