03: 𝐒𝐔𝐓𝐈𝐒 𝐑𝐄𝐂𝐎𝐑𝐃𝐀𝐂̧𝐎𝐄𝐒 𝐃𝐄 𝐐𝐔𝐄𝐌 𝐉𝐀 𝐅𝐎𝐌𝐎𝐒

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TW: O seguinte capítulo possui um dos gatilhos mais fortes citados nos informes. Repetindo, se você for sensível a esse tipo de conteúdo, por favor, pule os parágrafos ou até mesmo o capítulo.

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07 de Fevereiro

Livros. Apenas livros. Para cada lugar que meu olhar alcançava, as tantas páginas — reunidas dentro de capas duras feitas dos mais diversos materiais — preenchiam o campo de minha visão e também o interior das prateleiras extensas do cômodo onde me situo. A despeito da quantidade de objetos e do tamanho das estantes, o lugar não é assim tão grande, arrisco a medida de um quarto comum, com uma grande janela de vidro com vista para o quintal esverdeado da residência. A modesta biblioteca carrega consigo a responsabilidade de ser o local da casa no qual me sinto mais aluído, no bom e mau sentido, mas logo saberás o por quê.

Sentado à mesa de madeira escura, analiso minuciosamente a sala e cada exemplar que ali ficava. Há de tudo um pouco, desde livros didáticos a livros fantasiosos. Não diria que tenho um gênero favorito, apesar de possuir preferência pelos livros de ficção e aventura, por exemplo. Tento me arriscar em outros gêneros sempre que viável, entretanto, pois penso que cada um traz consigo sua singularidade, e no momento certo se mostrarão marcantes o suficiente para serem lembrados em algum momento da breve existência de alguém.

O lugar favorito de papai sempre foi este pequeno cômodo recheado de conhecimento e das mais diversas histórias. Ele passava horas e horas estudando e lendo cada um desses livros, e assim que terminava qualquer um que sabia que eu iria gostar, contava-me tudo ao me pôr na cama, palavra por palavra, com direito a uma atuação exagerada e cômica.

Após os sete dias de vazio que passei, vi-me necessitado de colocar minha mente em ordem ou apenas me distrair, ao menos periodicamente. Decidi ir em busca das lembranças que vagueiam esta casa, e reparei que em cada mínimo canto há ao menos uma, sejam elas agradáveis ou consternadas. Reminiscências de épocas calorosas, não só pelo clima exterior, mas pelo sentimento de valhacouto efetivo em todo local.

A pequena criança que corria para cima e para baixo pela casa, que vivia aventuras dentro de sua imaginação, que desbravava outros mundos através do jardim bem cuidado, que sorria junto a seus pais toda hora e recebia um afago de “boa noite” antes de mergulhar na terra dos sonhos, não imaginava o que aconteceria logo após a morte de seu querido progenitor. Assistiu a sua mãe, mulher que lhe inspirava por sua doçura e alegria, definhar e enlouquecer com a despedida infortuna e inesperada de seu amado. Deixou-se levar pela dor do luto e nunca aceitou que ele havia partido para não mais voltar.

Aqui costumava ser meu porto seguro, Solis, porém, em um piscar de olhos, tornou-se um abismo infinito de solidão.

Lembro que em toda refeição ela deixava louças à mesa para três pessoas, mesmo existindo apenas duas. Conversava sozinha, ou melhor, falava com o imaginário marido, o qual sua mente fez criar um laço perfeito de afeto para que não reparasse que apenas ela via o homem com que dividiu a vida. Passava a tarde toda dentro da biblioteca, pois o aguardava passar pela porta, para poder lhe acolher com um abraço e um beijo caloroso, como era costume fazer. Quando constatava que o mesmo estava demorando para aparecer, subia para o quarto, acreditando fielmente que ele estaria lá. E assim, acabava adormecendo, em meio a expectativa de ele chegar, rodear seus braços em torno de sua cintura e imergir junto a si em um sono profundo.

Aos poucos, mamãe mergulhava mais e mais na sua própria loucura, era como se seu escape tivesse sido transformado em uma prisão, da qual ela não sabia e nem fazia questão de sair. Fazia o que julgava certo de acordo com o que a mente perturbada ditava. Tratava-me, como sempre, com carinho e ternura, mas agia como se papai ainda estivesse vivo também. Era a mesma rotina: acordar, cozinhar, limpar, esperar e dormir.

Contudo, tanto brincou de casinha com seu imaginário, tanto creu que ainda éramos uma família feliz e completa, tanto o aguardou na biblioteca e antes de dormir, que enfim, cansou-se. A prisão havia a libertado, mas ela ainda não estava preparada para encarar sua realidade — talvez nunca estivesse, mesmo se passassem mil anos.

Gritou, chorou, quebrou tudo o que viu pela frente. Era como se tivesse recebido a mesma notícia pela segunda vez e sentido todas as sensações em uma intensidade maior. Fora simplesmente amedrontador, principalmente para alguém que estava apenas começando a entender a vida, como eu me via na época.

A partir dali, minha genetriz viu-se sem rumo, demasiadamente cega pelo padecimento para lembrar que havia dado luz a uma criança anos atrás, fruto do amor genuíno entre ela e sua paixão. Cega demais para ver que uma parte dele ainda estava com ela, e que a mesma ainda precisava de seus cuidados. Passava seus dias trancada no quarto, ora em prantos, ora dormindo. Não comia, não se banhava, não fazia nada além de chorar e adormecer. Não tive outra escolha a não ser me responsabilizar por ela naquele tempo todo. Era como se estivesse cuidando de uma boneca ao invés de uma humana.

Longos meses passaram dentro deste ciclo pesaroso, até que um dia o momento de mamãe se despedir sem me avisar previamente, por fim, fez-se presente. A mulher, finalmente, levantou-se de seus lençóis encardidos, porém seu destino final era a varanda do aposento, de onde findou sua jornada terrestre de uma vez por todas.

Possuía apenas onze anos quando aconteceu. Uma criança desamparada, machucada psicologicamente, e agora órfã. Os vizinhos não eram tão próximos de nós, entretanto, acalentaram-me, fizeram-lhe um funeral digno e enterraram-na junto a papai, onde ambos poderiam desfrutar da quietude da morte juntos, como ela queria.

Contudo, Solis, eles me esqueceram neste mundo. Abandonaram-me completamente. Simplesmente partiram, sem cogitar olhar para trás e ver sua pequena criança indefesa. Tenho ciência de que estou sendo o pior dos egoístas ao pensar deste modo, porém, não consigo aliviar minhas mágoas senão martirizando-me com tais pensamentos egocêntricos. Afinal, é muito mais fácil depositar a culpa em alguém do que em si próprio. Lá no fundo, onde não há pudor, sempre presumi ser total e unicamente responsável pelos acontecidos, mesmo que, de alguma forma, não fosse.

Desde os meus onze anos tive que lidar com o frio voraz da solidão. Por mais que as vizinhas sempre vinhessem cuidar de mim e da casa, assim como uma delas prestava-se a me educar e lecionar algumas aulas, estava totalmente só. Não tinha parentes, tampouco amigos. Os anos se passaram morosamente e me via ainda mais arruinado, eu era e ainda me sinto incapaz de encarar os desafios da realidade de uma vez.

Voltando ao presente instante, onde traço letra a letra sobre meus pensamentos e sentimentos nas folhas flavescens, reflito no que concerne às ações de minha progenitora. Ela passou por tudo aquilo porque amou, torturou-se inconscientemente apenas porque amava papai com toda sua alma, corpo e mente.

Amor. Li muito sobre ele nesses inúmeros exemplares da biblioteca, e entendi que esse é um dos sentimentos mais poderosos que existe, principalmente quando se trata do romântico. Li tantas vezes a sensação característica da paixão, descrita como “borboletas no estômago”, que me vi curioso de experimentá-la, ao mesmo tempo que temia afundar-me neste sentimento traiçoeiro e acabar como minha antepassada.

Solis, será que vale a pena? Esse desejo de descobrir o amor vale a pena mesmo?

Eu poderia, a partir dele, finalmente descobrir qual é minha função nessa vida. Mas como eu irei consegui-lo se sequer tenho vontade de sair de casa para conhecer pessoas? Como irei consegui-lo se tenho problemas para socializar com terceiros?

Como irei amar alguém se mal conheço a mim mesmo?

Com carinho, N.


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