Cidadezinha Velha

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A rodoviária desse lugar é tão deserta que só faltava bolos de palha rolando e algum xerife aparecendo com um reluzente distintivo preso em sua blusa. Era minúscula e sem movimento algum, as pessoas que desciam do ônibus já tinham suas caronas, até porque já é madrugada. Os comércios todos fechados e ruas escuras, o que deixava cada vez pior e mais solitário. Sentei no banco de cimento próximo ao ônibus, está gelado e sujo. Observo uma mulher e uma criança que descia do ônibus. O menino de aproximadamente cinco anos pula os dois últimos degraus ansioso e divertido, foram recepcionados por um homem alto e era explicito a felicidade em reencontra-los, os olhares saudosos se encontram e o mais novo solta a mão da mãe eufórico. Ele corre na direção do homem e é recebido por um abraço longo e rodopiado alegremente.
Suspirei cansado e abaixei a cabeça, lembrei-me da minha mãe, quando eu tinha mais ou menos a idade daquele molequinho. Provavelmente, aquele eu, jamais imaginaria se tornar esse eu. Presumo que eu seria chato e mal, ele odiaria o que eu fiz com saúde dele.
Me recordo dela me girando igual o homem que a girou a criança, do seus olhos azuis que reluziam no fim de tarde. Estávamos no quintal da nossa antiga casa, os passarinhos cantavam o cheiro de grama verde deixava aquele sábado perfeito. Meu pai chega e somos abraçados por ele, muitos beijos e cócegas. E finalmente ele tira a gravata, pega a bola para que cumpra o que prometeu antes de ir trabalhar: brincar comigo. É a última lembrança que tenho do meu pai tirando a gravata e cedendo seu precioso tempo para mim.
 
Acordo com um pedaço de madeira batendo no meu braço, pulei daquele banco e quase meu corpo vai para o chão. Já estava claro, e mais movimentado. Algumas pessoas me olhavam e eu tinha uma sensação de ter feito algo errado, olhares carregados de julgamentos. Era como se não fosse normal alguém dormir nos bancos de rodoviárias.
- Ei, você - Escuto uma voz feminina.
Levanto a cabeça e observo uma garota com o pedaço de cabo de vassoura, provavelmente a que me acordou no susto. Molhei os lábios secos e senti meu estômago reclamar de fome, ela me olha esperando que eu dissesse algo.
- Qual é a sua? - Me levantei, nervoso - Parece maluca.
- Eu? - Indaga - Maluco é você, que dorme em um banco de rodoviária, deixando como pessoas assustadas.
- E você, é quem? A dona dessa cidadezinha velha?
Seus olhos castanhos claros ficam semicerrados e os lábios entram para dentro da sua boca, irritadíssima, seus dedos brancos apertam o cabo da vassoura e eu me preparo para outra madeirada.
- Olha aqui, não estou nem ai pra quem é você ou de onde veio. Mas saia daqui, está incomodando os moradores, dessa 'cidadezinha velha'. - Faz aspas com os dedos magros.
Meço ela dos pés a cabeça, típica garota do interior. Botas com lama, calça jeans surrada e uma camiseta branca um pouco suja de barro. Seus olhos castanhos me fuzilam raivosos.
- Com o maior prazer - Levanto em um impulso e puxo a minha mochila. Passo por ela e sustento os meus olhos nos seus desafiadores.
- Volte aqui - Uma voz masculina gritou, preferi ignorar - Rapaz, volte aqui.
- Pai, deixe-o ir. - Ela pede.

Se ela não está concordando com ele, certamente eu vou olhar para ver quem é. Paro de andar e viro o corpo para o homem que me chamou. Baixo, gordinho e com as roupas parecidas com a da filha, porém usava um chapéu de palha velho.

- O , vem aqui um segundo homi   - Notei um sotaque caipira em sua voz.
Cocei a nuca, para que mais outro lugar eu poderia ir? Quem sabe ele me batia até a morte e eu fosse embora de vez desse lugar. Poderia usar o cabo que ainda está na mão da filha maluca.
Caminhei lentamente até ele, ouço a filha resmungando e brigando com o velho pai.
- Fala - Cruzei os braços na altura do peito.
- Homi, ocê é novo por aqui não? - Ele puxava o 'R', como naqueles filmes de faroeste.
- Se vai me dar mais uma liçã ...
- Venha comigo.- Ele interrompe - Darei um trabalho procê .
- Trabalho? - Ri ironicamente - O que eu mais quero é sair dessa cidade, desse planeta. Eu não quero trabalhar, eu não preciso trabalhar!
A garota virou os olhos e olhou para o homem, como se dissesse:  eu avisei.
-   Uai jovem, não vou incomodar ocê  então. Já que está em um lugar que conhece todos, com roupas boas e creio que muito dinheiro nesse seu borço 
- Não é da sua conta - Murmurei.
- Deixe ele pai, você é teimoso. - Ela insiste.
Notei que na sua voz, não havia aquele sotaque engraçado. E que por baixo daquela lama, ela poderia ser razoavelmente bonita.
Ele ainda me encarava, olhos cansados ​​contudo brilhantes. As rugas anunciavam sua idade, típico homem da roça, poderia sentir o cheiro de terra molhada vindo deles.
- Vamos, darei o que comer e o que vestir. Depois deixo ocê  aqui - Propôs.
Pra que tanta insistência em uma pessoa que o humilhou? Como eu recusaria, sentia que a qualquer momento eu iria cair e desmaiar de tão desidratado e faminto que eu estou.
- Só pode ser brincadeira - Ela da as costas e vai indo em direção a uma camionete velha e enferrujada.
- Por que está me oferecendo isso? - Perguntei curioso.
- Uai , ocê mais do que qualquer pessoa é o coitado da história. Não sou eu, o caipira brega que cuida da fazenda. Mas sim ocê , que pra estar aqui sem família ou qualquer tipo de roupa, com certeza não tem uma - Deu uma pausa e respirou fundo. Eu ainda o olhava - Não pense que outra pessoa irá fazer o mesmo procê não uai, chegar e oferecer um trabalho de verdade ou comida e roupa limpa. Pois duvido que ocê faz por merecer. Então não seja teimoso trem .
- Agora resolveu me humilhar também?
- Não - Respondeu e da os ombros - Apenas estou julgando o livro pela capa, como ocê fez.
- Não quero caridade de ninguém, não quero que sinta dó de mim e me leve pra sua casa. Não sou um cachorro abandonado, com o rabo entre as pernas - Retruquei.
Ele segura o riso, olha para filha que está esperando ao lado da camionete com os braços cruzados, e volta a me encarar.
- Faça o que quiser . Ocê já está perdido mesmo - Me deu as costas, indo em direção a camionete.
Eu não estou na melhor fase da minha vida, e nem na melhor situação. Eu odiava que as pessoas sentissem dó de mim. Por que sentir dó? Eu sou rico, tenho uma casa e carros, ou pelo menos tinha . O observei chegar perto da caminhonete, foi quando me dei conta de que as coisas que eu disse ter, as usei no passado. Eu não tinha mais nada, e não queria aceitar isso.
Meu estômago novamente implora por comida e eu fecho os olhos, já arrependido do que iria fazer.
- Espere - Andei rapidamente até eles - Eu aceito. Vou com vocês.
- Ótimo - Ela vira os olhos e entra no motorista.
Vejo ele sorrir, satisfeito.
- Onde eu vou? - Perguntei confuso, pois a camionete só tinha dois lugares.
- Aqui - Ele bateu na parte de trás, sorrindo. Posso jurar que a camionete rangeu.
- Mas - Balancei a cabeça negativamente - Está sujo ai e todos vão me ver encima de uma camionete velha e enferrujada?
- Garoto - Abaixou a cabeça e sorriu, deu pra perceber que ficou completamente desconfortável com meu comentário - Não tenho todo o tempo do mundo procê, quer encher o buxo ou não? - Deu uma pausa - Hein trem ?

Philipe FerreiraOnde histórias criam vida. Descubra agora