Ao fim de seu primeiro ano no exército real, Krolle já colecionava diversas cicatrizes. Os métodos para se tornar um soldado digno do Rei Jeromy Cares, eram invasivos e torturantes. Seus músculos dobraram de tamanho, abandonando a fisionomia de lagarto inocente que tinha antes de ter de deixar sua família.
Apesar das dores físicas e da constante lavagem cerebral feita pelos seus superiores, ainda se lembrava das últimas palavras de seu pai antes de partir.
— Meu filho, sua vida não será fácil! — falou olhando firme nos olhos do garoto — Irão quebrar teu corpo para moldá-lo à imagem deles e vão tentar destruir sua mente para que ignore e acate aos absurdos do rei, mas você precisa sempre se lembrar de onde veio e do que é importante.
— O que seria isso papai? — falou Krolle com o focinho escorrendo e os olhos cheios de lágrimas.
— A vida importa! — disse mantendo um tom de importância — Ao contrário da mensagem que o rei passa sobre a vida das minorias, idosos e rebeldes, não importarem, lembre-se que você faz parte dessa minoria, eu e sua mão também. Lutaremos todos os dias para que possamos tirar você do pesadelo em que o estamos colocando. — Kronk apertou os ombros do filho e encostando sua testa na do garoto disse: — Me prometa que vai manter sua habilidade escondida!
— Mas pai, ela não é...
— PROMETA GAROTO — berrou o pai — Eu... eu não suportaria perdê-lo mais uma vez...
Bem ou mal, o fato é que Krolle conseguiu superar os dezoito anos no exército. As provações eram sempre de vida ou morte. A fraqueza não era bem vista aos olhos do rei e não havia espaço para o aprendizado a partir dos próprios erros, apenas pelos dos demais que tinham suas vidas ceifadas. Perdeu a maioria das poucas amizades que conquistou e com o tempo se tornou mais fechado.
Chegara então o dia da cerimônia de oficialização para sua entrada nas forças armadas do reino. Ele não podia negar a ansiedade que se instalava em seu peito. Mesmo que tivesse dentro de si a confirmação de que odiava tudo naquele sistema em que vivia, ainda sim, era para esse momento que havia sofrido tanto.
Inúmeras provas de agilidade, sagacidade, resistência e força física passavam por sua cabeça, enquanto tentava se preparar para as provações da cerimônia, mas nada do que havia passado nos últimos anos o haviam preparado para o que estava por vir.
Na superfície do pântano, haviam construído uma arena flutuante com duas grandes jaulas encobertas por um tecido grosso e no centro havia uma estrutura tão alta que atravessava o topo das espeças arvores, que Krolle conhecia bem: O elevador da evaporação: um método de tortura para os soldados desobedientes.
Uma multidão cercava a arena pelas águas ansiando pelo espetáculo que estava por vir.
— Sejam bem-vindos cidadãos do reino de Pantinus — esbravejou o capitão das forças armadas Alig Thorys — É com grande prazer que trago hoje a cerimônia de nossos futuros soldados oficiais, mas para isso acontecer, antes, eles terão que passar por duas provas.
Krolle armado apenas com um machado com o peito desprotegido junto de mais dois companheiros, foi ordenado a subir na plataforma, ficando de frente para as jaulas.
— Na primeira prova — continuou discursando o capitão —, eles terão que sobreviver ao ataque de grandes bestas que circundam o leste e o norte de nosso reino ameaçando nossas fronteiras. Torçam pelos nossos guerreiros e que comece a prova!
O tecido sobre as jaulas de ferro foram puxados, as travas foram soltas e duas criaturas foram reveladas surpreendendo o público. Krolle confuso com o que via, acreditava que as duas fêmeas a sua frente, pertenciam apenas às lendas que ouvira quando criança. A maior delas segurando uma espada em cada uma das quatro mãos, avançou sobre ele numa ferocidade fora do comum. Krolle rolava e esquivava dos ataques rápidos da fera tentando não ser atingido pelo tornado de metal que ela criava ao se movimentar. Os outros dois crocodilos enfrentavam uma criatura menor com penas coloridas que voava por cima deles, limitada apenas pela corrente em seus pés. Com voos rápidos e rasantes, ela desferia golpes com suas garras, das quais os combatentes não conseguiam esquivar a tempo.
Krolle aparou os ataques com o machado e encontrou uma oportunidade de desferir um soco contra a mulher à sua frente. O punho fechado não encontrou muita resistência quando atingiu a pele macia e quente, diferente da sua, encontrando ossos que se partiram. A fera cambaleou com o impacto recebido e a multidão entrou em alvoroço. O lagarto avançou e desferiu mais dois golpes bem encaixados e ela foi ao chão. O sangue rubro verteu pela plataforma. Krolle se sentia culpado pelo que acabara de fazer, mas não havia outra escolha, por isso tomou todo cuidado para deixá-la apenas desacordada.
Já para seus companheiros a luta não estava indo nada bem. A garota, coberta por penas, havia roubado a espada de um dos guerreiros e causava ferimentos cada vez mais profundos com ataques cada vez mais selvagens.
Krolle vendo a situação, avaliou bem a cena e correu para ajudá-los. Passou entre os lagartos que se encontravam em posição defensiva e pulou por cima da criatura, quando ela voou em sua direção bradando a arma. Num movimento ágil, Krolle escorregou os dedos pela corrente que a prendia travando-a em suas mãos. A mulher-pássaro, surpreendida pelo tranco, foi de cara no chão ficando desacordada com o impacto.
As águas do pântano ondulavam ante a comemoração do povo que assistia o espetáculo sangrento. Krolle sentia a energia daquela comemoração penetrar seu coração e ficou satisfeito pelo que havia feito.
— Pelo que puderam ver hoje senhoras e senhores, hoje nasce um grande guerreiro para nossas forças — discursou o capitão — Depois deste feito, a segunda prova será como brincadeira de criança.
Krolle olhava para a multidão que gritava seu nome, procurando seus entes queridos e amigos de infância entre rostos desconhecidos. Enquanto isso o crocodilo que discursava continuou:
— Como todos aqui sabem, existem grupos escondidos em nosso reino que discordam do que nosso querido e amado rei diz e ameaçam nossa ordem de tempos em tempos — falou enquanto fazia um sinal para que abaixassem o elevador da evaporação — Apresento-lhes os rebeldes capturados.
O guerreiro acompanhou a descida do equipamento e notou quando surgiram cinco reptilianos com as caldas presas por pinos que atravessavam suas carnes. Amordaçados e com os corpos desidratados devido à insolação direta a qual haviam sido submetidos, eles não ofereciam grande perigo. Um rosto em particular fez Krolle perder o ar.
— Pai? — sussurrou Krolle incrédulo.
— Krolle Dillus, a sua última tarefa para receber seu título e ingressar nas forças armadas é muito simples — falou o capitão — Execute os rebeldes capturados, para que sirvam de exemplo para os demais.
O som da multidão pedindo sangue foi abafado por uma nota aguda que ensurdeceu seus ouvidos. Uma sensação de mal-estar percorreu seu corpo eriçando suas escamas. Sentia as batidas do seu coração martelar em sua cabeça como trovões em meio a tempestade.
— O que está esperando garoto? — perguntou o Alig irritado.
Krolle contrariando a ordem direta, girou o machado no ar e o fincou no chão, se recusando a obedecer e se pôs a correr para soltar os prisioneiros. Imediatamente guardas reais correram pela plataforma e o imobilizaram impedindo de alcançar seu objetivo.
— Irei mostrar como se faz garoto! — afirmou o superior sacando a espada enquanto se aproximava dos rebeldes.
A cólera tomou conta de Krolle. Por mais que ele se debatesse, os guardas eram mais fortes e o impediam de se mover. O lagarto então convocou mentalmente as forças das águas que tremulavam, causando pânico na plateia.
— MATEM OS REBELDES! — gritou alguém na multidão
— UM DELES CONTROLA AS ÁGUAS!
— ACABEM COM ELES DE UMA VEZ!
Colunas de água subiram aos céus e ameaçavam destruir a plataforma com chicotes líquidos. O público gritou temendo o pior.
— PARE! — gritou Kronk Dillus olhando para o filho, o tirando de seu estupor — Não faça isso.
Krolle sentia forças contrárias brigando dentro de si ao ouvir a ordem do pai.
— Rejeito suas ordens, escória — disse o capitão penetrando a espada no pescoço do prisioneiro, forçando-a de modo a perfurar sua carne profundamente, sem perceber que o pedido não se referia a ele. — Nossos inimigos merecem apenas a morte. Você se mostrou um fraco Krolle e nas forças armadas não tem lugar para membros fracos. Guardas, prendam-no.
Os guardas puxavam o guerreiro para fora da arena. Olhando mais uma vez para seu pai, Krolle o viu dizer suas últimas palavras:
— Viva.
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Contos de Alyngard
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