Uma Questão de Honra - Parte 3

2 1 0
                                    


Krolle abriu os olhos e fitou o céu pontilhado por minúsculas luzes brancas, que permeiam toda sua imensidão. O vento lhe trazia a umidade que tanto necessitava. Perdera as contas de quantos dias já estava no elevador da evaporação como punição por ter se recusado a ceifar a vida dos rebeldes.

Apesar de fria, a noite era a melhor parte daquele pesadelo. Era nesses momentos que podia pensar, refletir e se culpar por tudo que havia feito e do que não fizera. Porém, quando os primeiros raios de sol despontavam do horizonte, o desespero tomava conta. Sabia que começaria o seu tormento. O calor do sol roubaria toda água de seu corpo e ele desfaleceria várias vezes, perdendo o controle sobre si mesmo.

Krolle usava toda força que lhe restava para manter o máximo de umidade que seu poder conseguia segurar. A cada novo dia seu domínio, sobre seus próprios líquidos, diminuía e quando acreditou que já não aguentaria mais, aceitando o seu fatídico destino, o elevador começou a descer.

— Ei, olhe isso — comentou o soldado que baixou o equipamento — Acho que ele ainda está vivo!

— Impossível! — argumentou o companheiro —, ninguém sobrevive por tanto tempo assim, nem mesmo a elite do exército.

Ouvindo a conversa, Krolle tentou falar, mas as palavras morriam antes mesmo de serem formadas.

— Avise o Capitão Alig, ele saberá o que fazer — ordenou o primeiro.

O lagarto semivivo foi levado para uma prisão subaquática, onde esperou por um tempo infindável encoberto pelas trevas do local. Aproveitou esse tempo para se recuperar aos poucos. Mesmo sendo seca, a cela ainda era muito mais fresca do que o topo das árvores.

A grade que o impedia de escapar se abriu e dois guardas o levaram para uma sala onde encontrou alguém que não gostaria de ver novamente.

— Por Zilla, que situação você me pôs garoto! — falou Alig Thorys — Era para você ter morrido como os demais naquele elevador, e agora tenho que encontrar algum lugar para te encaixar.

— Porque não me mata de uma vez? — perguntou Krolle com a garganta arranhando pela falta de água.

— Devido ao que você demonstrou ao sair vivo de lá — bufou — Sabe, nosso rei preza pela força e você nos mostrou que apesar de não ter passado na oficialização do seu título, ainda é um réptil forte.

Krolle chacoalhou a cabeça sem saber como responder.

— No exército real você não tem lugar, então creio que terei que mandá-lo para servir no castelo. — falou Alig.

— Por favor, não! Não, não. — falou surpreso com a notícia, ignorando as dores — Me mate, mas não faça isso comigo!

— Hehehehe, sabia que iria ficar feliz com essa nova designação — zombou — Esta é a sua sentença, garoto! GUARDAS, levem-no daqui, não quero mais vê-lo ou ter qualquer notícia dele.

***

A vida no palácio era dolorosa. Krolle acordava junto dos demais serviçais antes do coaxar dos Peixe-fogo, e seguia em uma fila para receber as vinte chicotadas diárias. Após isso, ele era remanejado para alguma tarefa específica que nem sempre se repetia. Trabalhava na cozinha, na limpeza, no concerto de peças e objetos, na recepção de convidados, no arranjo de mesas e onde mais o ordenavam. Independente de fazer ou não seu trabalho corretamente, sabia que apanharia novamente em algum momento, muitas das vezes, apenas por caprichos do rei ou de seus servos de alto nível.

O trabalho que ele mais ansiava por fazer, era cuidar do jardim pantanoso. Não por ser a tarefa mais fácil, ao contrário, ela era a mais perigosa sendo recebida com muito receio por qualquer outro serviçal. Ali naquele local sem a companhia dos guardas, ele podia encontrar um pouco de paz.

Dentre as principais implicações da atividade a ser desempenhada, a pior delas, era a de afastar os Peixe-fogo. As pequenas criaturas andavam no leito do pântano e se alimentavam de uma alga-daninha alaranjada que alterava a coloração esverdeada das águas, o que não fazia o gosto do rei. Dóceis, eles não faziam mal a quem chegasse perto, porém, quando arrancavam seus principais alimentos, os peixes quadrúpedes, liberavam bolhas quentes que explodiam ao entrarem em contato com quem estivesse perto.

Krolle naquele dia, mais uma vez sozinho, aproveitava a atividade para treinar suas habilidades sobre o controle das águas e pensar em estratégias de fuga para vingar seu pai. Porém, seus planos mudaram quando notou uma presença mergulhando no pântano.

Nadou ao seu redor, causando um rebuliço debaixo d'água. Krolle podia notar suas escamas e o corpo escultural que ela possuía, mas só quando viu a cicatriz na cauda ele reconheceu fazendo seu coração bombear mais forte.

— Jaquie?

— Achei que não fosse me reconhecer — respondeu parando na frente de Krolle — Você não cresceu nadinha hein!

— Por Zilla, ainda as mesmas piadas — falou revirando os olhos — O que faz aqui?

— Sabe como é né, muitas guerras rolando, médicas morrem e as filhas têm que se virar para sobreviver — Jaquie baixou a cabeça, desviando do olhar do lagarto a sua frente.

— Eu... eu não sabia... — Krolle num impulso, abraçou a antiga amiga que chorou junto de seu peito — Sinto muito por isso!

— Não sinta, não foi culpa sua — disse se afastando e vendo as lágrimas se misturarem com a água — Eu, estava lá Krol, quando pegaram seu pai. Queria ajudá-lo, mas não pude.

Krolle se virou para afastar as lembranças daquele dia quando ouviu os guardas se aproximando, indicando que seu turno no jardim estava acabando.

— Não temos muito tempo Krol — falou Jaquie — Fique mais forte e não se deixe vencer por eles — disse apontando para os soldados — Quando chegar a hora você terá que estar preparado, até lá, mantenha a esperança! — Antes de partir, ela se aproximou e deu um beijo no lagarto.

***

Durante muito tempo, Krolle se manteve são, graças às palavras de seu pai e à promessa de Jaquie. Por muitas vezes, quis desistir de tudo e se entregar à loucura, como acontecia com muitos serviçais, mas ele sempre se voltava àquele momento de ternura e desespero, sentindo os lábios formigarem ante um beijo terno e, ao mesmo tempo, frio.

Se utilizou das tarefas para fortalecer seu corpo e sempre que podia, treinava seu poder secreto. Ainda não sabia controlar ou de onde vinha essa conexão, mas já conseguia atingir grandes resultados.

Krolle desenhou na poeira de sua cela um bolo de aniversário. Solitário, soprou a poeira e realizou suas preces a Zilla, como sempre fizera. Comemorou seus vinte e sete anos e também o fato de o exército não estar na cidade, o que causou a diminuição, mesmo que por pouco tempo, das torturas diárias.

Escutou uma movimentação do lado de fora de seu cárcere. Ouviu baques surdos vindo de várias direções, gritos abafados. Quatro guardas atravessaram a porta de sua prisão e imobilizaram Krolle. No processo acertaram-lhe um golpe na cabeça, o deixando desacordado.

Algumas horas depois, sua vida virou de cabeça para baixo.

Contos de AlyngardOnde histórias criam vida. Descubra agora