O sabor do poder

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Quando o vi pela primeira vez, soube imediatamente que Hidan era como eu: uma pessoa vazia, uma casca sem emoções. Só que isso não significava que não quiséssemos  sentir alguma coisa, porque ser vazio faz com que tentemos desesperadamente encontrar algo que preencha este oco dentro de nós.  

Eu sempre estive em busca de qualquer coisa que me fizesse sentir viva, acabava sempre me empurrando cada vez mais ao limite. Começou com simples apostas, giro de dinheiro. A jogatina virou parte da minha rotina ainda nova, poker, truco, vinte e um, cacheta, buraco... Qualquer coisa com cartas, eu jogava e ganhava. 

Morar em Vegas, a cidade do pecado, podia corromper toda a sua alma. Eu bem sabia disso, pois a minha já estava completamente perdida. Apesar de não precisar culpar a cidade pelos meus pecados, uma vez que  as cicatrizes do passado nunca me deixavam esquecê-los.

Desde a adolescência usava maquiagens pesadas, que me faziam parecer bem mais velha do que era, para poder frequentar os cassinos e fugir da realidade familiar que me perseguia. Foi num desses cassinos que o conheci. 

Não achei que fosse possível perder a alma suja e pesada que me habita, contudo, se por acaso, tivesse alguma maneira de ser salva... alguma mínima possibilidade… Eu soube que havia perdido no exato momento que meus olhos se prenderam às suas íris rosadas.

Estávamos numa mesa, rodeada de outros homens bem mais velhos, e ridiculamente ricos, que sabiam jogar poker com um blefe quase perfeito. Puxei uma cadeira e coloquei minhas fichas para jogar com eles. 

No início, ele nem dirigiu seu olhar a mim. Parecia totalmente desinteressado se ia ganhar ou perder, mas ainda conversava com os outros, que desenvolviam qualquer assunto que pudesse distrair os jogadores. Na verdade, nenhum deles sequer me deu atenção até que fiz a segunda jogada, apostando todas as minhas fichas – cinco mil dólares, que consegui jogando em outras mesas – apenas para conseguir sentar ali, com os ricaços e tirar todo o dinheiro deles. 

Foi então que as íris fúcsia pousaram em mim, tirando todo o meu fôlego com a profundidade de seu olhar. Era como se eu estivesse sendo sugada e me afogando naquele vazio tão grande. Seus olhos me perfuravam até a alma, em seu rosto havia uma expressão impassível, os cabelos platinados penteados para trás, a camisa negra e com certeza de alfaiataria estava com os primeiros botões abertos, mostrando parte do peitoral e uma corrente de prata com um pingente. Eu o encarei de volta me sentindo zonza. Não era a beleza dele. Era algo no fundo de seu olhar, algo sombrio, tenebroso. Como se não existisse perigo suficiente para assustá-lo.

Eu me senti atraída imediatamente, porque  sabia: ele não era apenas um pedaço de mau caminho. Ele era a perdição completa e total. 

Meu inferno particular.

Aquela sensação esmagadora que senti na presença dele, como se estivesse impondo sua força sobre meu corpo, apenas me fez querer saber mais. Era como um convite silencioso para me perder na escuridão e dançar com ele no lugar mais sombrio que existisse. 

O perigo em seu olhar ficava me atraindo, igual  uma chama atraía uma mariposa. 

Aquele torpor permaneceu mesmo quando um dos outros jogadores falou comigo e tirei minha atenção dele. Mas de alguma forma,  sentia meus ossos doerem com o olhar rosa daquele homem. Todos os meus instintos, atenção e minha guarda, estavam atentos  a qualquer movimento que ele fizesse. Meu coração palpitava, minhas mãos suavam e a saliva desceu arranhando toda minha garganta.

Tentei manter o controle e continuei jogando e ganhando, era a ordem natural das coisas. Meu segredo? Os olhos. 

Eu conseguia ver além dos tiques, além dos hábitos, além dos blefes. Encarava o olhar de todos naquela mesa e  conseguia ver seus baralhos refletidos em seus olhos. Memorizava,  contava quantas cartas e quem tinha cada uma, criando uma estratégia de probabilidade infalível. 

Em uma de minhas jogadas, eu sabia que  o albino tinha cartas para ganhar. Ele poderia ter levado a bolada da noite. Mas eu arrisquei mesmo assim, apostei tudo o que consegui, e ele nem mesmo hesitou antes de baixar as cartas e desistir. Isso me deixou perplexa, curiosa, sedenta por ele.

Ele não parou de me encarar nem mesmo quando um dos velhos começou a me xingar, pois eu havia levado todas as fichas em uma única aposta. Nem mesmo se abalou quando eles começaram a me acusar de roubar nas cartas, sendo que eu não havia feito nada.Sequer se moveu quando começaram a me puxar e arrancar minhas roupas, mesmo que eu estivesse lutando sozinha contra quatro homens. 

Aquele homem apenas me observou sem expressar nada em seu rosto. Ele ficou me vendo ser humilhada por todos os outros que estavam naquela mesa de poker, eles me tratavam como se eu fosse um pedaço de carne dentro de um açougue. Ele não desviou os olhos por nenhum segundo. Era como se estivesse esperando que desistisse de algo a qualquer momento. Eu só não sabia o que era. 

E aquilo fez meu sangue correr tão rápido que quase sorri, sentindo a vida preenchendo meu ser de uma forma inexplicável. 

Me lembro que estava quase nua, humilhada, havia perdido todo o dinheiro – pois obviamente não deixariam levá-lo. Um tapa foi desferido em meu rosto, o gosto metálico de sangue preencheu minha boca. Contudo, eu não chorei, continuei tentando me defender das mãos que começaram a me segurar. 

Eles me trataram porcamente, como todos da minha família; o sabor do desrespeito amargava junto ao sangue na minha língua.

Para minha surpresa, inesperadamente, a voz dele, monótona, grave e entediada apenas soou pelo ambiente, fazendo calafrios subirem por todo o meu corpo.

"Isso é um desperdício de tempo"

Eu senti o tempo quase parar naquele segundo, como se tivesse ficado surda e desligado meu corpo para tudo o que acontecia em câmera lenta. Meus olhos simplesmente não conseguiam desviar do olhar dele. Quando me lembrei de respirar, quando soltei o ar que prendia sem saber nos meus pulmões, tudo voltou ao normal. Então percebi que as mãos não estavam mais sobre meu corpo e todos haviam se afastado com repulsa. Como se eu tivesse lepra, eles de repente não queriam me tocar como antes, nem sequer olhar em minha direção.

Não sabia se agradecia ou apenas me sentia ofendida pelas únicas palavras que ele havia dirigido a mim. Mas, de alguma forma, eu sabia que ele falou aquilo como uma recompensa, pois tinha certeza de ver um brilho passar por seu olhar.

Acabei sendo literalmente jogada na rua por um dos seguranças, apenas de calcinha e sutiã. Juntei o resto de dignidade que não tinha e saí caminhando sob olhares maliciosos. Eu  me sentia suja; semelhante a  um pedaço de carne podre que açougueiros descartavam. Os olhares nas ruas me faziam ter  náuseas.

Mas, ninguém  ousou mexer comigo. 

Podia sentir meus ossos doendo, como se aquelas íris rosadas ainda estivessem sobre mim. E de uma forma totalmente insana, naquele momento, eu me senti mais viva do que nunca. 

Daquele dia em diante, nunca mais me senti sozinha, por mais que estivesse.

Elixir: o sabor da EternidadeOnde histórias criam vida. Descubra agora