Olhava de longe a lua sumindo e em seguida apaguei, senti meu corpo ser puxado com força pro fundo do rio e aquilo só podia ser obra do velho, ou era outra mandinga da Cuca pra me deixar mofino⁸. Mais do que já estava. Achei que o gatinho tinha sei lá, ao menos simpatizado comigo, mas o cara só percebeu as tatuagens e ainda me chamou de muro de escola pública, isso nunca aconteceu antes. meu último pensamento antes de apagar e nadar para longe foi nele, naquele cabelo cacheado que eu iria sim meter a mão e bagunçar, se não, pode apostar que mudo meu nome.
Aqui em baixo é tudo muito escuro, sempre odiei viver aqui, tudo tão frio e tão pitiú⁹, amo comer peixe, mas bem preparado, assim ao natural não dá não, causa rebuliço¹⁰ e vontade de baldear¹¹, aí nem cola sujar o corpinho já que não vou ter como fugir se colocar os bofes pra fora. Preciso dar um jeito de me esquivar do velho e voltar a superfície, cada vez mais acredito que ele e aquela velha armaram pra me ferrar, de rocha¹², porque como posso estar quase conseguindo me recuperar do mau agouro daquela visagem e apagar tão de repente? Mal olhado não foi, minha avó fechou meu corpo quando tinha dez anos, pouco antes do velho me buscar na marra.
Sigo nadando no meio de todos e vou diminuindo o ritmo como quem não quer nada, o velho se acha o rei do cardume, porque para quem não sabe, muita gente acha que boto é um tipo de peixe grande, onde na verdade somos mamíferos. Já fui totalmente humano, pelo menos até meus dez anos, aí o meu não querido papai foi em terra numa noite de lua cheia, e me jogou no rio, passei a nadar feito um condenado de dia e saia a noite para ver minha avó e estudar, e foi assim que aprendi que todo dia é dia de Santo e por isso comecei a busca pela minha outra metade, que não tem nada com questões de alma, minha outra metade só precisa me amar nas duas formas e me querer na melhor delas, eu acredito que seja de humano, sou muito gato, de rocha mano.
Levei mais tempo do que queria pra conseguir escapar, não parava de pensar no gatinho e em como fui leso dizendo pra ele me chamar de meu amor, já pensava no que dizer quando encontrasse com ele da próxima vez, sinto que ele é a chance que tenho buscado de me livrar de uma vez desse fardo que carrego, e ainda tem a minha avó coitada, ela nem pode me receber por muitos dias nem toda hora porque os poucos vizinhos acham que moro na cidade com meu tio, tem toda uma armação pra chegar lá como quem vem mesmo da cidade e isso não dá pra fazer sempre por causa da longa viagem de barco.
E ainda preciso ajudar a Caipora e o irmão dela a manter a Cuca afastada da mata, ela sempre tenta nos roubar um pouco de alma para continuar jovem e se achando linda, mal sabe que a casca nem sempre atrai com bons olhos, dá pra ver de longe que ela é ruim. Ainda preciso saber como ela se esconde tão rápido e pra isso pedi ajuda até pro curupira, ele tem vigiado ela no mato.
Boitatá disse que vai falar com o primo, mas aquele lá só desperta uma vez no ano e juro que não sei como ele está sempre atualizado com os fatos se dorme o ano inteiro. Mas foi Boiúna quem falou da raiz que precisamos para quebrar o feitiço de roubar a alma, e preciso encontrar um pé de Tajá igual o da lenda, nas margens do rio e só então terei como me livrar da bruxa.
Hoje é dia de algum Santo, então tenho como sair do rio sem fazer tanto alarde, os outros preferem os Santos do mês de Junho e quando as festas acabam eles não saem do fundo do rio e ficam roubando os peixes nas redes dos coitados dos ribeirinhos. Por falar em ribeirinho, acabo de lembrar que um daqueles caras falou sobre meu gatinho não gostar de pescar, mas gostar de caça, que isso não seja verdade porque se for, vou comprar briga com o Tatá e ele não pega leve nem com a irmã.
Em todo caso, preciso focar em uma coisa por vez. Agora tenho que dar um jeito de encontrar o gatinho, descobrir se ele gosta mesmo de homens e investir meu charme sobre ele. Nada de feitiço de boto, apenas meu lado galanteador humano, que daí quando eu tiver que mostrar meu lado animal ele fica por me amar ou me mata por causa do susto. Ainda prefiro a primeira opção, minha avó não merece outra perda tão dolorosa assim.
Rondo todas as casas sem ser visto e descubro onde um dos gala secas¹³ mora, ele conversa com alguém que mais ouve do que fala e comenta sobre o meu lindo gatinho em apuros, não fico para ouvir muito tempo e sigo buscando a tal raiz que tanto preciso, uma hora vou achar e vou poder me livrar do feitiço da Cuca. Tudo o que mais quero além de fazer aquele garoto lindo se apaixonar por mim. Uma coisa por vez e a dele é em breve.
Mais um dia de luta sem vitória em relação a raiz, mas não desisto e para não cair em uma nova tentação, mantenho o amuleto que minha vó me deu sempre comigo, quando estou na água a Cuca não consegue me atingir, mas ao sair preciso estar com ele, por isso sempre vou e volto pro rio pelo mesmo caminho, mas nunca uso um só e nunca é tão visível, aprendi isso com o Curupira, deixar várias marcas de por onde passei pra não ser achado com facilidade e tem dado certo desde quando comecei a vir direto. Outra coisa que pode me salvar disso tudo é muito mais complicado que achar a raiz do Tajá, seria encontrar com o Uirapuru e pedir que realize o meu desejo de ser apenas humano. Enquanto isso não acontece, ando por aí em busca do Tajá ou do amor verdadeiro de alguém. Quebrar feitiços não é uma tarefa muito fácil.
Enquanto o amor não vem, sigo em busca da raiz, ou quem sabe dou a sorte de encontrar o Uirapuru e pedir que ele interceda por mim. Porque Tupã não pode ser tão esquecido assim que me deixou ser levado pelo boto que fez mal pra minha mãe.
A sorte não sorri para todos.
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⁸ lê-se "mufino": triste; abatido; chateado;
⁹ cheiro ruim ou forte;
¹⁰ enjoo;
¹¹ vomitar;
¹² confirmar uma verdade;
¹³ gente sonsa; tapada; estúpida;____________
Hei babys, espero que gostem de mais esse capítulo.
Até breve, e enquanto eu não voltar vê se não escangalha nada por aí!
16/03/2021

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Encantado
FantasíaBeto é um garoto de 18 anos que precisa encontrar o amor até o final do ano. Vive de vilarejo em vilarejo curtindo todas as festividades do mês de junho. João Tiago é filho de pescador e não se imagina seguindo essa profissão, tem sonho de ir para a...