1

235 28 38
                                    

Tudo começou muito antes da lua que me fez nascer. o pai do pai, do pai do pai… é confuso eu sei do pai do meu pai, o primeiro boto que saiu do fundo do rio e fez tudo isso acontecer. Ele deveria carregar isso sozinho, mas para a minha infelicidade, passou pro seu primeiro filho, que continuou como o pai e virou um vício. Antigamente esperavam a lua cheia, o mês de Junho e as festividades dos Santos daquele mês. Quebrei essas regras e continuo quebrando.

Minha avó me contou que quando a minha mãe engravidou, ninguém sabia como aconteceu, devido às lendas que contavam, nas noites de lua cheia as virgens morenas não saiam para o baile. Talvez minha mãe tenha fugido, ou meu pai tenha invadido a casa. Nunca vou saber, minha mãe morreu no parto e se isso não tivesse acontecido ela poderia ter ficado louca. Meu pai era um boto muito filho da puta, a bem da verdade ainda é. Quando completei sete anos ele veio me buscar, não queria ir, porque nunca quis ser igual a ele, nem aos outros como nós. Foi quando conheci a Cuca, aquela velha mal amada filha da puta. Ela me enganou e ajudou meu pai, fui obrigado a cair no rio, virei aquilo que mais odeio, com o tempo e muito estudo, descobri que se encontrar alguém disposto a viver ao meu lado, me amando de verdade, consigo abandonar esse fardo, e vou poder ter minha eterna liberdade. Ao menos aquela velha índia serviu de alguma coisa. 

Até completar meus dez anos, não conseguia sair do rio, e quando fiz pela primeira vez, conheci duas pessoas incríveis, Boitatá, conhecido por aí como Bernardo, um cara lindo e cheio de encantos, protetor de todas as matas, homem forte, mal humorado, pele negra. Ele e a Cuca não se dão bem, e graças ao Bernardo que descobri que posso quebrar meu encanto. A outra pessoa incrível é a irmã caçula dele, Caipora, minha melhor amiga, uma bela índia que todos na cidade conhecem como Carina. A pequena criatura tem uma força descomunal, protege todos os animais e bom, sou um deles. Juntos, Boitatá e Caipora são pessoas maravilhosas e quando separados são opostos, o que ele tem de mal humor, ela tem em alegria.

Claro que esses não são os nomes deles, não os reais, no entanto é como vou chamá-los, afinal estamos na cidade e aqui não dá pra chamar o Bernardo de Boitatá sem assustar os ribeirinhos. Adoro peixes e essa noite tem festa para agradecer a fartura, Festa de São Pedro. Melhor noite para forrar o bucho e comer de tudo que se imagina e consegue fazer com peixe.

- Tá pronto Beto? Parece a noiva e nem é dia de Santo Antônio.

- Calada, estava matutando¹. Meu prazo tá acabando e se não encontrar alguém, vou viver no fundo do rio pra sempre. 

- Velho, não pira. Pra quê ficar contando o tempo. Aquela mal amada disse mais alguma coisa? 

- Caipora tu não entende. - Suspiro frustrado - Aquela velha me deu prazo, tenho até o fim do ano, já fiz dezoito e se não encontrar alguém ela toma tudo o que ainda tenho de humano, para poder viver como boa samaritana por mais algum tempo.

- O Tatá deu um jeito de te dar mais tempo. Agora vamos que mesmo sendo contra esse desperdício de peixe, preciso te ajudar a encontrar sua outra metade.

Por ironia do destino, quando chegamos no local, a música² que tocava falava um pouco da lenda que contam sobre meu pai. Porque acreditem, no que depender de mim, serei o último boto, e isso termina ainda esse ano. Olhei em todas as direções e uma coisa me chamou atenção, um grupo de garotos marombados que judiavam³ de um menor que eles. Fiquei muito irritado e segui naquela direção, de longe podia ouvir tudo o que falavam pro garoto que tentava se defender, mas era muito menor que aquele bando de sem noção. Qual o problema do garoto não gostar de pescar? Eu odeio ser um boto.

Quando percebi qual era a intenção daquele bando de lesados⁴, cheguei mais perto para poder defender o garoto, queriam ensinar o menino a nadar na marra, Jamais permitirei isso. Se é que a intenção era essa mesmo!

- O que tá rolando aqui? O garoto já não disse que não quer nadar, são surdos? - Deveria ter ficado onde estava, o garoto em questão é lindo, senti vontade de esguichar e não era água pelo pequeno orifício aberto em minha cabeça.

- Não te mete maluco. Tá achando que só porque é grande, é dois? Nós somos quatro mané, então rasga⁵.

- Quer que eu vá embora? Vem me pôr pra correr então. - O babaca me olha como se tudo aquilo de anabolizantes me colocasse medo. Cheguei mais perto, saindo totalmente das sombras e bastou pros três amiguinhos se puxarem⁶. - Acho que tua turma te largou. Deixa o garoto em paz, porque hoje, até que tô bonzinho e não quero perder o resto da noite socando a tua cara.

Bastou isso e o quarto mané se foi. Olhei melhor o garoto, todo lindo, cheiroso, cabelos cacheadinhos do tipo que dá vontade de meter a mão e bagunçar tudo.

- Meu nome é Beto. Mas pode me chamar de meu amor que também aceito. - Joguei a isca e espero pegar o peixe. Baixei o tom da voz e fiz como a dona pavulagem⁷ da Iuara sempre faz, joguei meu charme sedutor na voz.

- Meu amor?! Sério isso cara? - Ele começou a rir, parecia que não ia se controlar nunca, e quando parou me olhou com lágrimas nos olhos, banquei o romântico e me dei mal. - Valeu pela ajuda com os amiguinhos do Doca, filho do prefeito. Mas tô de boa e nem na próxima encarnação te chamaria de meu amor, gatinho até que tu és. Mas todo pixado assim igual muro de escola pública não faz meu tipo. Tô indo nessa Beto.

Não deu nem tempo de me recuperar do toco e ouvi a risada de bruxa de conto de fadas atrás de mim, tenho certeza que meu modo sedutor não funcionou por culpa dela.

- Gostou né sua piranha de quinta?! Porra Caipora, achei que tu queria me ver mais tempo em terra, estragou meu lance.

- Não fiz nada, juro. Cheguei quando tu estavas se achando a última sardinha da lata. Já te falei pra não aparecer todo riscado de canetinha, mas tu achas isso da hora. Levou um fora por ser tatuado, gatinho. E o carinha nem falou o próprio nome… Hei Beto, que foi? Tu tá bem? 

- Chama o Tatá daquele jeito de vocês. A Cuca tá aqui em algum lugar. - Só aquela bruxa pra tirar as minhas forças assim. 

Não demorou para o Tatá chegar depois do assobio que a Cai deu. Eles me ajudaram a entrar na água fria do rio, aquela velha mal amada fica mais forte a cada vez que me dou mal com alguém. Maldita hora que topei beber o chá antes de saber que era feitiço.

____________

¹ mesmo que pensando;
² Tajapanema;
³ mesmo que malinar;
⁴ pessoa sonsa; lerda;
⁵ se retire; vá embora;
⁶ sair correndo;
⁷ pessoa presunçosa; metida; convencida.

___________________
Vou deixar aqui o início, espero que gostem.

Deixem seus comentários, seus votinhos maravilhosos. Que fico muito feliz.

Por hoje é , volto na semana que vem, e até , te aquieta, se não o pau te acha!

💋💋💋

11/03/2021

EncantadoOnde histórias criam vida. Descubra agora