Dia 7: Cidade Fantasma

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"as vezes eu sinto que essa cidade ta abandonada"

"como você pode falar que uma cidade que tem mais de doze milhões de habitantes está abandonada?"

"não sei, é só uma coisa que eu sinto, as coisas aqui andam meio que na escuridão, sabe? de dia as pessoas se comportam como gado, de noite é uma cidade assustadoramente vazia com muita gente."

"acho que você fumou muito"

"não é sério, pensa comigo, a gente ta todo dia aqui nessa cidade, a gente vem pro centro TODO final de semana, não importa o horário, a gente sempre encontra pessoas conhecidas, certo? e todas as vezes a gente conhece pessoas novas, certo? mesmo que nós estejamos exatamente no mesmo lugar, fazendo as mesmas coisas"

"mas isso é o centro, aqui é o centro de tudo, o point das pessoas de todos os cantos de são paulo, por isso que isso acontece"

"exatamente, e quantas dessas pessoas a gente conhece? a gente cola aqui o tempo inteiro com as mesmas pessoas, a gente viu já todos os tipos de situações, desde brigas, até reconciliações, falsidade e comprometimento, e quantas dessas pessoas a gente conhece de verdade? ninguém. faz um ano que a gente sai com as mesmas pessoas e quantas delas a gente conhece? parece que é todo mundo meio fantasma, todo mundo some uma hora e a gente não sabe mais nada, e quando chega sexta tudo se repete, é muito esquisito"

"você ta falando que você não conhece nem a luana? ou o pedro? por exemplo"

"eu não conheço nem o danilo que eu amei, não conheço a hellen que foi alucinada por mim, não conheço o matheus que foi até o fim da linha vermelha para dormir na minha casa depois de um porre que fez ele vomitar no metrô as quatro e quarenta da manhã, eu não sei quem é ninguém e ninguém me conhece. parece que o centro é um mergulho em uma solidão sem fim, no começo a gente sente que só aqui tem espaço pra gente, mas depois parece que é sufocante e desesperador estar aqui, as vezes eu acho que não aguento mais"

"você ta falando que você quer ir embora daqui? é isso?"

"nunca, eu ainda amo esse lugar como se ele fosse meu habitat natural, não sei se estou acostumada com a solidão e aqui eu me sinto menos sozinha? acho que isso não faz muito sentido depois do que eu disse. mas é estranho estar aqui, eu me sinto em casa na mesma proporção que eu sinto que se eu morasse aqui eu ia entrar em um colapso. as pessoas daqui são muito caricatas, parece que elas saíram de um livro jovem adulto."

"você sempre fala sobre esse negócio de livro jovem adulto e eu nunca entendo"

"quando eu disse que as pessoas são como fantasmas é porque elas somem durante a semana e durante o dia, obvio que é porque a gente vive em um país que você precisa trabalhar o dia inteiro pra se manter vivo, mas ai a gente só se encontra de final de semana, perto da noite, então o nosso tempo de conversa com essas pessoas é absurdamente limitado, e ai gente só vai sabendo sobre a vida delas alguns extremos, por exemplo, a gente sabe que aconteceu uma coisa muito delicada com a laura, certo? mas a gente só sabe de uma história da vida dela que causou um impacto, a gente sabe de um sofrimento dela, uma angustia, a gente não sabe quem é ela, eu não sei a cor favorita dela, nem se ela prefere suco de limão a de maracujá, eu sei de uma história que causou um sofrimento, uma situação delicada, mas isso não é ela, isso não é a vida dela, eu não sei quem é a laura e isso é muito esquisito, porque quando você lê um livro para jovens adultos, você sabe esses detalhes do protagonista, e o protagonista da sua vida é você, e ai você não sabe esses detalhes da vida de personagens terceiros, mas quando você é jovem tudo é meio que um caos, todo final de semana é uma história envolvendo drogas, traição, acidentes e relacionamento e várias e várias coisas, e isso não é muito caricato de fanfic? acho que é por isso que eu quero trabalhar com literatura."

"para escrever sobre são paulo e os seus dramas?"

"para eu escrever o que eu não sei sobre são paulo e os seus dramas, para eu escrever o que eu penso sobre esse lugar e sobre as pessoas daqui"

"qual vai ser o seu principal ponto nisso tudo?"

"o amor, ou a falta dele"

"eu fico com a falta, sem dúvidas"

"eu fico com o amor."

Linha VermelhaOnde histórias criam vida. Descubra agora