"God topples from the sky, hell's fires fade:
Exit seraphim and Satan's men:
I shut my eyes and all the world drops dead."Sylvia Plath
Sabe, JK, hoje é aniversário de morte do meu filho. Eu não sei há quanto tempo ele morreu. (Quando vai ser meu aniversário de morte?). Você não sabia que eu tinha um filho? A última lembrança que tenho antes de vir pra cá foi de ver o grupo de amigos dele jogando bola no pátio do colégio – ou seria no play do prédio? Ou na pracinha? – o mesmo grupinho de cinco meninos de sempre. Exceto que agora eram quatro. Faltava meu filho, óbvio. Ele era uma criança triste. Vê-los ali jogando, vê-los com um espaço faltando, com as mesmas carinhas de empolgação de antes, só que agora desprovidas de alma, caras lívidas de meninos jovens, caras de criança decoradas com o aro da morte, com a marca de alguém como eles que não resistiu. Meu filho, tão jovem e tão louco, como eu.
Uma criança é meio anjo meio demônio, JK. E você é meio criança. Se tivesse conhecido meu filho, iam jogar videogame juntos, iam se divertir com essas brincadeiras que garotos brincam e eu não ligo nem um pouco. Eu não ligo para o mundo dos meninos. Exceto que ele me encanta. E me dá inveja. Que eu olho de onde estou e maldigo meu destino.
A morte do seu filho, você vai dizer, deve ter sido o motivo de toda a sua loucura. Mas eu já era louca antes. Vamos parar de tentar arranjar motivos e culpas e vamos nos calar só por um instante.
Na minha cama.
Na minha cama (que não é minha) você se cala. E eu te adoro calado. Eu te adoro com a boquinha de tulipa fechada, gosto quando ela abre só pra você mostrar os dentes, e pra me morder, e pra me chupar, e pra dizer as bobagens graciosas que você diz, e pra cantar como o passarinho flechado que você é.
Meu São Sebastião menino.
Me ama amarrado no tronco da sua árvore, padroeiro da minha cidade, me ama atravessado de flechas e de indiferença. Me ama pendurado, pendendo do teto trompe l'oeil, a coluna envergada, as coxas flexionadas como que o corpo quebrado ao meio, a linha branca na lateral da calça preta acompanhando o desenho da sua perna dobrada, o sapato lustroso cravejado de pérolas. Você é obra de arte em forma de rapaz desavisado.
Quantas vezes eu gostaria de morrer por você nessa cama?
Pois então, por isso mesmo inventei que foi você o causador da minha loucura, para dar a ela contornos de honra, para cobri-la com um manto de veludo e diamantes. Para fazer minha morte feliz.
É uma Pietà que vejo ao fundo do seu corpo levitando? Dizem que Maria era uma menina quando deu à luz, assim como eu. E meninas sangram desde muito novas, não é irônico? E meninas carregam seus filhos mortos nos braços quando estão apenas começando a virar mulheres. Eu carregaria seu corpo sangrando nos meus braços, assim como o do Cristo, até lavaria suas feridas e escorreria minhas lágrimas pelos ângulos do seu rosto.
Eu poderia te adotar, JK. Eu poderia te adorar.
A minha casa ficou vazia depois que meu filho voou para fora dela. Nem eu quis mais viver ali. Vaguei pela rua, perguntei a tantos homens seus nomes, abri meu peito e minha blusa, calei meu choro em travesseiros alheios. Uma morte por dia. Uma morte a cada dia. Depois, silêncio. Três segundos de paz. Então eu despertava e arrancava meus próprios cabelos em desespero, arranhava a pele do meu braço com unhas de faca, mordia meus dedos porque em alguns lugares não se pode gritar. Até que vi sua cara em algum lugar. Numa tela. Vi seu corpo em movimento, seu cabelo em movimento, suas coxas, sua voz em movimento, seus golpes, seu treinamento de guerra posto em prática contra jovens loucas como eu. Fui abatida. E você: Cristo, Sebastião, agora também Cupido, flechou-me o peito e rasgou-me a alma. (Quem dera eu fosse mártir.)
Você, Cupido, morte da minha morte. Asa da minha asa.
(Me desculpe se queimei seu peito com óleo ardente. Amanhã passa)
Tenho tossido muito à noite, junto com uma vontade de arranhar minha garganta, e de arrancar minha pele. De me descascar inteira e me livrar dessa carcaça. Quando minha tosse piora, você não vem. Eu até esqueço que você existe. Aguardo a medicação fazer efeito (remédio pros nervos, não pra tosse) e deixo meu corpo flutuar igualzinho ao seu no trompe l'oeil, exceto que eu não tenho suas pernas nem o seu pescoço nem o seu cabelo. Deixo-me flutuar com minha camisola puída. Meu menino, quando foi que eu te perdi? Quando, em quantas vidas antes, me separaram de você? Me separaram de mim mesma? É isso que chamam de carma? Em quantas vidas eu preciso pagar pelo que fiz, seja lá o que tenha sido. A morte não parece ser um degrau tão alto, um salto tão complexo. Ela deve ficar por aí, perto do seu teto de capela, perto das estátuas de museu que te idolatram. Deve. Sim. Eu não caibo. Não caibo no meu ventre nem nas minhas costelas. Eu não queria ter um filho. Você nunca vai saber o que é isso. Acho engraçado como te vestem com essas roupas de homem quando você é só um garotinho. Dá pra ver pelo jeito como você se senta. As pernas nunca totalmente abertas, as pontas dos dedos apontando pra dentro.
Toda vez que alguém diz que mulheres são fortes, penso no quanto eu fui fraca. No quanto sou fraca. No quanto me deixei roer pelas beiradas, aos pouquinhos, liquefazendo os dias e escorrendo as horas pela peneira da minha mente. A minha mente com defeito de mau uso. Eu pego uma caneta e vou rabiscando as paredes desse meu quarto alugado. Vou desenhando flores. Cada pétala é um dia. Cada caule é uma noite ao seu lado. Eu rabisco a flor inteira quando perco a memória. Quando não me lembro das horas vividas. Um dia que se apagou totalmente. Você sabe o que é isso? Dou três batidinhas na parede, minhas unhas mancham a tinta da caneta que não terminou de secar. Cada batida é um beijo seu nos meus lábios de defunta. Um garoto tão bonito, tão jovem, de pele de pêssego... e necrófilo. Quem diria. Beijando uma morta. Fazendo amor com uma morta. Metendo sem dó numa morta até esporrar sobre seu peito carcomido.
Você não tem vergonha?
Três batidas.
Você chegou.
Beija meu rosto, eu chupo seus lábios rosados com minha boca descarnada.
Três batidas.
Três botões da minha blusa que você abre.
Seus dedos viraram neblina, viraram algodão. Já não produzem som.
(Eu eventualmente rimo, eventualmente não.)
Depois, você está sentado no chão, nu da cintura pra cima, o pescoço recostado no meu colchão. Tem aquele riso frouxo de menino burro. Eu me derreto. Tem os dentes cintilantes à mostra. Lambo teu pescoço e penso que nunca mais vou precisar me levantar pra trabalhar, que vou ficar ali dentro daquele quarto com você pra sempre, que você não vai olhar mulher alguma além de mim porque não existe isso, porque você é meu todinho, porque depois de amanhã eu vou ter tomado seu veneno, sugado ele de todas as suas extremidades, e vou estar morta. Como uma santa. Os lábios quase virgens. E você vai me beijar, me embalar, e eu não vou me lembrar que meu útero foi morada de um estranho. (Você não é um estranho.)
Os remédios ainda não bateram.
Aproveito para conversar com você ou com seu pescoço estendido ou com seu suor brilhante ou com os músculos do seu braço que sozinhos travam diálogos madrugadas adentro comigo.
Tenta me consolar mas nunca é o suficiente. Tenta de novo.
Como é difícil, meu amor, eu digo. Como é difícil arrumar um jeito de desistir...
Por quê?, você pergunta.
Porque a vida nos escraviza, ela deve ter alguma magia que nos prenda, por mais que já não faça mais sentido.
Não entendo, irmã. (Às vezes você me chama de irmã. Deve ser porque sou mais velha.)
Como a gente foge?
Mas eu sei que você não vai poder me responder.
Como a gente se enforca?
Mas eu te amo e de repente não quero mais morrer. De repente o sol tem uma cor e o céu é confortável como um travesseiro. De repente tudo fica bonito (porque você é a beleza) e eu deixo de pensar em como me enforcar num teto que não tem viga.
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Mad girl's love song
FanfictionUm conto sacro-erótico sobre a relação entre loucura e desejo, baseado no poema Mad girl's love song, de Sylvia Plath. Misturando mitologia cristã e remédios para dormir, é o relato confessional da paixão química entre uma mulher cuja própria mente...