VIII

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Cristopher on

Dois malditos dias de caminhada até enfim chegarmos no território que Scarlett parecia conhecer como a palma da mão

Era nítido a mudança em sua expressão. Como se ela enfim estivesse em casa, estivesse em paz

As árvores, com copas mais afastadas, permitiam a entrada de alguns raios do sol não tão quente, dando um ar angelical à floresta.

Nos últimos dias, apenas trocamos as palavras restritamente necessárias, mas eu tinha que admitir: ela era boa

Não reclamava do chão duro e irregular ao dormir, do frio à noite e tampouco dos barulhos assustadores que a floresta poderia fazer. Não reclamava das horas incessantes e seguidas de caminhada, das poucas paradas para beber água, se banhar ou para descanso

Ela acompanhava meu ritmo sem pestanejar, em passadas largas e rápidas sem sequer se dar ao luxo de ofegar ou limpar o suor da testa

Tudo bem que eu havia a testado em alguns momentos, forçando-me a caminhar rápido ou acampando em lugares difíceis. E se ela havia notado, sequer tinha comentado.

Não sabia se era orgulho ou estupidez, mas ela lidava com o que tinha e não reclamava disso

Mas então ela para sua caminhada e ergue o punho em sinal para que eu faço o mesmo. Seus joelhos estavam levemente dobrados e seus braços descansavam ao lado de seu corpo tranquilamente.

Um galho quebrando a nossa esquerda revela que não estávamos sozinhos ali, mas é com um sorriso no rosto que a mulher desvia no exato momento em que um enorme lobo marrom pula em sua direção

O animal se recompõe e a encara. Eu estava preparado para intervir quando ele para e a analisa

Sua calda se abana e ele uiva alto e em alegria antes de correr em volta da mulher em animação

Ele pula sobre ela fazendo-a cair de costas no chão enquanto subia em seu peito e lambia seu rosto

Procuro conter o rosnado ao saber que o cheiro de um macho qualquer substituiria o aroma doce que ela emanava

Me repreendo, sabendo que eram os instintos vindo a tona e que eu não tinha absolutamente nada com isso

Mas quando aquele ser se transforma em homem alto, de cabelos castanhos claros e olhos da mesma cor, eu o encaro de cima a baixo

-Scarlett!-diz abraçando a mulher e a erguendo no ar- eu senti sua falta!

-Eu também senti a sua, Steve-responde retribuindo o gesto e eu trinco o maxilar me aproximando de ambos

O homem me encara no instante em que eu me aproximo e estendo minha mão em sua direção vendo-o parecer nada satisfeito

-E você é?-indaga aceitando o gesto

-Meu nome é Cristopher-digo apertando sua mão com força- é um prazer, Steve

E insatisfeito, ele separa sua mão da minha, nada feliz com o aperto e com a forma na qual disse seu nome

-Preciso conversar com a anciã de vocês-peço recebendo olhares atentos de ambos enquanto pensava em algo mais produtivo do que Steve -concordemos, não é uma tarefa difícil-

-Você? Com a moradora mais antiga de todo o Sul?-indaga debochado e eu resolvo não dizer nada, me parabenizando por minha habilidade de não estrangular pessoas insolentes. De fato, cinco anos em uma cela contribuíram infinitamente para o meu autocontrole e desenvolvimento pessoal. Quem disse que não tinha um lado positivo em tudo isso?

Então a anciã ainda estava aqui, que bom

-Ela restringe muito suas visitas-diz Scarlett sem agressividade na voz. Ela estava meio distante, fria.

-Eu entendo. Apenas diga que eu preciso vê-la. É importante-peço ignorando a existência de Steve e encarando a mulher que morde o lábio inferior como se pensasse sobre o assunto, antes de concordar com a cabeça

-Vamos, o pessoal vai amar te ver!-exclama puxando a mão da mulher e a arrastando alguns metros até que ela se solte e caminhe por aí só

Me mantenho alguns metros atrás, seguindo-os e observando como ele não calava a boca e como ela era educada demais para mandá-lo a merda

Ela tinha um sorriso leve, mas não verdadeiro, enquanto balançava a cabeça em concordância. Eu já a tinha visto rir, sorrir. Mesmo que em uma cela escura. E parecia que esse sorriso agora não chegava aos olhos.

E no instante em que passamos por um arco de madeira e caminhamos por uma estradinha de terra, chegamos na alcateia

Seguro um sorriso ao ver o local que há décadas não via. Eu realmente deveria ter vindo aqui quando os líderes me chamaram para o nascimento de sua filha

Mas eu estava ocupado gastando meu tempo com coisas inúteis

Coisas que me trariam tristeza no futuro. Se eu tivesse saído de casa naquele dia, talvez tudo tivesse sido diferente. Eu teria conhecido minha companheira

Saio do transe quando vejo um grupo de pessoa se aglomerar em volta de Scarlett, a abraçando, felicitando-a, rindo e chorando

Ela era amada

Ela era admirada

Mas seus olhos não brilhavam como achei que brilhariam. Ela não sorria como achei que faria

E eu sabia o porquê. Ela era o alicerce deles, era notável. Eles precisavam dela

Mas quem seria o alicerce dela? O trabalho dela era fugir de prisões e ajudar o povo, mas quem a ajudaria?

E mesmo sendo tão amada, ela ainda havia sido traída por um deles

E no canto de tudo aquilo, observava a cena como personagem secundário de um livro. Admirava o modo como ela era admirada e me questiono o que ela já deve ter feito por eles, o que deve ter aguentado por eles

Como alguém tão carinhosa e amada pode ter sido tão machucada e jogada em uma cela escura? O que ela andava fazendo por aí?

Quem... quem era ela de verdade?

Mas foi quando a porta de uma casa central foi aberta, que de repente todos pararam. A construção era a mais alta e a mais bela de toda a alcateia e estava no centro, de maneira imponente e era de notável importância

E quando uma senhora, em muita boa forma, de cabelos longos, em um misto de ruivo e branco, trançados impecavelmente, apoiada em uma bengala de madeira maciça, sai de lá, eu não seguro o sorriso de lado

A mulher, com boa postura e um andar quase imperceptivelmente manco, tinha roupas discretas e caminhava farejando o ar por entre o povo que aos poucos a reverenciavam e sussurravam entre si em surpresa

O respeito e o choque estampado em cada um dos rostos. Eles a respeitavam e eram leais a mulher. E ela... bem... eles descobririam em breve a quem ela era leal

Scarlett encara a cena confusa, conforme a mulher caminhava por todas aquelas pessoas que abriam caminho em um corredor

Mas foi quando seu olhar cruzou com o meu, que ela arregalou os olhos. A senhora caminha em passos lentos até mim, que estava encostado em uma árvore qualquer, e se coloca de joelhos e cabeça baixa, em uma reverência antiga e respeitosa

Toda a alcateia me encarava sem entender, com uma confusão no rosto e desconfiança no olhar.

-Levante-se Irene-peço-lhe e ela o faz imediatamente

Encaro seus olhos castanhos que não havia mudado em nada e solto um sorriso sincero, também abaixando a cabeça levemente em uma reverência curta, mas significativa

-Fazem anos, minha cara amiga

-É um enorme prazer tê-lo de volta, supremo

A loba da revolução Onde histórias criam vida. Descubra agora