Tecnicamente estou cumprindo pena. Não posso, por tanto, nem pensar em pedir algum tipo de regalia, como desculpa, que me faça sair daqui. Sem passeios, voltas no parque, viagens...
Só posso aliviar minha culpa corrompendo meu papel de culpado, de prisioneiro. Consideram-me psicologicamente inapto de viver em sociedade, mas não enxergam, como eu, que meu estado de culpa não pode ser cumprido de outra forma senão no perdão, e não há inaptidão que possa impedir isso. Pelo menos é o que acho agora... É nisso que escolhi me prender para me ver livre.
Sabendo que não há meios legais para cumprir minha verdadeira pena, decido fugir. A ideia absurda daquele sujeito, que nem sei mais se continua a ser meu advogado, nem passa por minha mente positivamente. Ele propõe que o que fiz seja negado, e jamais admitirei isso! A fuga não anula minha culpa, mas a enfatiza.
Há alguns meios de escapada, e o mais óbvio é pedir a ajuda de Mauro. Ele quer tanto me ver livre que seria incapaz de recusar tal convite. Mas será que o envolvo nisso? Ele pode se complicar feio se tiver a cumplicidade descoberta. Outro meio é ir sozinho... Não sei se algum enfermeiro me ajudaria, e duvido que o grande e conceituado psicólogo Osvaldo Souza se arriscaria em perder a credibilidade para me ajudar, mesmo com a amizade e a pena que sente de mim.
Então está decidido! Já que isso é algo particular, então eu que me arrisque e fuja sozinho! Preciso pensar no planejamento... Se aquelas criaturas sem rosto não me perturbarem, já será um alívio. Seria bom se eu pudesse controlar meus sonhos para planejar tamanho acontecimento sem interrupções do mundo acordado. Mas não seria uma incoerência pensar dentro do inconsciente? Pra mim isso agora tanto faz...
Não tenho mais paz lá também.
*
Colocarei à prova esta noite o que pensei. Tenho que aproveitar enquanto tenho ânimo, algo adquirido pela trégua que as criaturas me deram.
O primeiro passo é simples. Quando a enfermeira chegar para aplicar o remédio do sono profundo em minhas veias, o negarei, afirmando que consigo dormir sem ele. Ela tentará me aplicar da mesma forma, pois o veneno não mais tão doce é para que eu me aprofunda o quanto antes na mente e me mantenha lá o máximo possível de tempo, não para eu simplesmente dormir. Diante do meu comportamento estranho, ela não se sentirá bem em me forçar, já que nunca dei trabalho para que ela exercesse sua função, muito pelo contrário. Sendo esgotadas as tentativas de me persuadir, sua complacência falará mais alto que o profissionalismo, com ela não apelando para a força bruta em dar-me o sono que hoje tanto odeio. Não terá escolha a não ser aceitar minha negação e confiar em minha palavra. Aquela moça além de bela é tão bondosa... e boba.
Enquanto a responsável pelo meu sono achar que estou dormindo terei certa segurança para me movimentar pelo quarto. Esperarei mais ou menos 30 minutos, quando todos os pacientes do corredor já estiverem dormindo e, simplesmente, forçarei a janela que fica do meu lado direito. Os quartos ficam todos a partir do segundo andar. E neste fica o meu. Não é um absurdo pular da janela sem se machucar, mas não é nada seguro fazê-lo. Estou numa prisão, não num hospital, então obviamente terá alguém guardando o local. Abrirei a janela para chamar atenção, para fingir uma fuga, e então me esconderei embaixo da cama. Farei algum barulho para que a enfermeira venha até o quarto. Uma vez aqui, ela perceberá os sinais de fuga (o fato de eu estar acordado e o da janela estar aberta) e alarmará a equipe de segurança, sem sequer ter alguma dúvida que a fizesse procurar por mim no quarto. Com a equipe (uma equipe pequena, tendo vista que a clínica não é grande) alarmada e me esperando no local mais convencional de fuga, na parte de trás da clínica, que fica atrás de um muro de pouco mais de três metros e que tem vista para a rua, eu correrei para o subsolo, onde funcionários costumam entrar e sair. Aí entrarei no banheiro deles e sairei pela janela, que, pelo que sei da vez que fui levado ate lá, é um tanto mais alta que eu e bem estreita, mas conseguirei passar. E depois que cruzar o estacionamento, estarei livre. Não quero que nada me atrapalhe a cumprir minha verdadeira pena.
Nem aqueles olhos oceânicos nos quais me perco me farão recuar!
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Há outros de mim (COMPLETO)
General FictionA vida do senhor Moraes é tentada por ele a esquecê-lo. Pena que ele não pode consumar isso sem assumir seu ego criador de mentiras, o causador de tudo que se formou em sua mente lívida e confusa. Os males do passado o fazem querer outra persona. É...