10 - Longínquo fim

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Já passa da hora do jantar, pouco antes do plano entrar em vigor. A ansiedade é tanta que a comida desce feito uma bigorna no estômago, em mastigação mal feita.

Enquanto levanto da cama, que serve tanto de leito como de local para o jantar, minha cabeça começa a doer. Que droga! O que está causando isso? Dói, mas não é tão forte a ponto de cessar a ânsia que tem como meus pensamentos sua morada.

As pontadas nas têmporas continuam quando chego no banheiro. Lavo as mãos e depois o rosto. Olhando para a pia, a visão periférica pega por alguns milésimos de segundo meu rosto. E isso é o suficiente para fazer a dor que era pouca aumentar. Massageio as laterais da cabeça, respirando fundo.

O que está causando isso? O pensamento repetido joga uma neblina na certeza que se aproxima no horizonte, a que batalha para tomar o território da ansiedade.

— Que droga!

O grito que dou confirma que já não existe na mente a preocupação com a fuga. A dor agora está insuportável. Dói tanto que mal consigo mexer-me até a cama, e... uma escuridão me cerca, seguida por uma figura branca na vista e um forte barulho de queda.

*

Não demoro muito a notar que o chão branco e úmido no qual piso não é meu quarto. Esta longa nuvem sob mim me seduz a continuar caminhando, e a sedução aumenta com as figuras em exposição que surgem nas laterais, flutuantes, pouco acima de mim.

As imagens mostram vários rostos meus, mas disfarçados. Sujeitos com barbas postiças, chapéus extravagantes e poses que exibem personalidades que meu eu de fato não admitiria assumir. Isso não representa a realidade de minha vida pregressa, a que me trouxe à loucura e aos manequins de cera. São um símbolo dela. Somente um entre as dezenas de quadros.

E fica impossível não lembrar daquelas vozinhas agudas e em enfático pedido de ajuda. Mas o que eu podia fazer? Eu era o mágico daquele circo. Precisava manter meu papel. Um dos truques era escapar intacto de uma grande bola de fogo, e eu consegui isso. Foi uma pena não ter conseguido fugir de meu papel, esperando ouvir gritos de satisfação e não de desespero.

Eu era tão jovem nessa época... Faria vinte anos há poucos dias.

Após o ocorrido, o chamado "acidente", reconheci automaticamente a culpa. Eu era medroso para manifestá-la como faço hoje, mas reconheci que não podia responsabilizar minha outra personalidade por aquilo. A mentira que eu achava, no momento do reconhecimento, não entraria de novo em mim e tomaria controle de meu ser.

Mas ela veio. Agora em formato mais sério, engravatado, com gel por todo o cabelo e com barba bem feita. O simpático palestrante que ia de escola em escola falar aos pré-adolescentes sobre a importância do bom visual e do bom relacionamento no local de trabalho. Que horror! Um horror que somente ficou claro após a encarnação daquele personagem. Um passeio que ele promoveu com cerca de trinta crianças e uns dois professores a um dos maiores escritórios de São Paulo não chegou ao destino, pois o ônibus caiu de uma ponte e acabou mergulhando no Rio Pinheiros. A maioria dos ocupantes morreu, sendo sua causa o impacto da queda e do movimento do ônibus e a demora do socorro aos restantes, que não conseguiram sair e se afogaram.

Nadei até a lateral do rio e notei a coincidência que estava em minhas narinas. Aquele fedor forte tinha aroma de morte e de culpa. E onde esta se encontra? No fato de eu ter plenas condições para salvar algumas vidas, mas preferir tirar o terno molhado e com algum sangue e jogá-lo fora, ajeitar o cabelo, abotoar a camisa, limpar o sapato... Foi uma pena que a vaidade daquele personagem tenha o influenciado a não ter feito a coisa certa.

Não protagonizei somente casos onde minha mentira teve papel importante na destruição de vidas. Mesmo que timidamente e sem causar muitos efeitos nos que presenciavam-me, depois do acidente, eu inventava incorporar algo, mas cada vez mais eu reconhecia o problema por trás disso. Era um transtorno, pois pouco consegui me controlar. Meu melhor amigo me deu a ideia de estudar psicologia, sugerindo que isso me ajudaria a entender meu problema e controlá-lo, e aí acabamos em tal matéria na faculdade. Anos depois, frustrei-me com a tal resolução que nunca veio. Larguei a faculdade que estava da metade para o fim, encontrei no circo e no teatro formas de esvaziar o turbilhão de mentiras dentro de mim que queriam sair. Encarnei vários personagens, conheci minha esposa, a bailarina e equilibrista principal do circo. Quando tivemos nossa primeira filha, finalmente consegui controlar as personalidades, o que me fez sair das artes cênicas.

Há outros de mim (COMPLETO)Onde histórias criam vida. Descubra agora