4 - Sabor doce

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Aquele doce veneno faz-se amargo em minha veia. Sem sabor algum, ele não tem efeito. Não me força a dormir como costumava, a provocar inúteis confusões. O que se passa na mente agora soa útil e vívido. O sorriso de minha neta se despedindo, com a mão sendo puxada numa pressa protetora da mãe... Isso simboliza tanto meu passado, o protagonista e motivador de minhas espontâneas e falsamente profundas imaginações. Estou triste. Sinto-me envergonhado.

Os manequins de cera voltam a ter como tarefa principal chamar minha atenção. Olho-me no espelho para dar forma, finalmente, a um deles.

Talvez seja fácil modelar meu rosto derretido naturalmente aquecendo aquela cera... Mas e o nariz? A curva pra fora e a pequenez, se feitas com exatidão, seriam dignas do trabalho de um artista. Os olhos são simples, e a boca precisa só de um risco entre o nariz e o queixo. Este é um pouco retraído e tem a largura tão notável que quase não se percebe sua curvatura, como um dedo esticado. Acima da testa enrugada vejo os cabelos cor de cinzas, os que um dia foram de um castanho dourado. E como eram grandes... Bem que dizem que a velhice dos fios não depende por completo dos anos que um aniversário expõe.

Espera! É uma personalidade nova que quero, não uma imagem que exale a atual persona. O manequim pronto me traduz por completo. Quero um outro eu, não um idêntico ao atual! Deixei-me levar pelo egoísmo que eles enfatizam. Mas um deles já está pronto. Não há mais como remodelá-lo. Não há mais como retirá-lo de minha cabeça.

O rosto moldado me incita memórias...

- Há outros de mim.

Sussurro a mentira que perde, de um jeito não querido, um pouco o teor de falsidade.

*

Meu psiquiatra está me visitando. O vejo saindo do carro pela janela não tão alta do meu quarto no segundo andar. É um sujeito esguio, num casaco de couro e calça social, de cabelo negro e bem penteado, num porte respeitável, de quem quer ser levado à sério. Sento-me na cama, o esperando, sabendo que aquela roupa inteira branca (uniforme dos pacientes na clínica), com botões na camisa velha que vivem a desabotoar sozinhos, não ajudam a simbolizar em mim equalidade perante à figura tão respeitável do doutor Souza. Ele é mais alto que eu em igualdade de pose, e mais ainda quando estou sentado. Sinto-me tão diminuto e passivo...

Ouço três batidas lentas na porta, demonstrando respeito por minha privacidade. Tal gesto só ocorre quando há uma visita, pelo que percebo. Um verniz comportamental para os do mundo exterior a este lugar.

Após as batidas que me aconteceram outras duas vezes em minha internação, a enfermeira de olhos azuis permite que o doutor inicie sua terceira visita em exatos dois meses.

- É um imenso prazer recebê-lo, doutor.

Falo sem levantar, estendendo a mão, a espera do cumprimento tornar-se completo.

- Como sempre, cordial... Está bem, velho amigo?

Sim. O homem honrado que apertou minha mão é um amigo. Nos conhecemos num circo quando crianças, no interior de São Paulo, e levamos nossa amizade para a sala de faculdade. Ele formou-se, tornou-se mestre, doutor... Eu abandonei a graduação no antepenúltimo semestre. Desde o passado já se pôde perceber que seríamos bem diferentes. Médico e paciente. Curador e doente.

Mesmo com os mais de vinte anos de amizade que tivemos, sinto-me tão desigual em sua presença. É como se um ser superior se pusesse em minha frente. Um ser de bondade extrema, que se põe a curar os enfermos, por mais contagiantes e terríveis que sejam suas doenças. É a caridade manifestada no seu mais amplo significado.

Que ser estonteante aquele garoto descabelado se tornou... Lembro até hoje do sabor daquele algodão doce que ele me deu em nosso primeiro encontro. Fazia tanto calor dentro do circo que ele derretia no palito.

Ficava mais gostoso assim.

Há outros de mim (COMPLETO)Onde histórias criam vida. Descubra agora