É incrível o jeito que o doutor me trata. Sim, é meu amigo, mas sempre esperei dele um tratamento profissional e sério, como sua aparência sugere. Ele faz um clima descontraído, onde conversamos como se estivéssemos num botequim ou numa praça. Será essa a tática psicológica dele? Lembro-me vagamente de ter visto algo relacionado na faculdade... Talvez seja só pena mesmo, emoldurada no comportamento igualitário. É... ele deve ter piedade de me ver aqui, um doido de pedra com cabeças de cera na mente, enquanto tem sucesso na mesma carreira que larguei.
Quero que esta visita acabe logo, assim o azul volta a mim e faz doce meu sangue azedo.
— Não esqueçamos de falar sobre aquelas criaturas de cera. Ainda estão na sua mente?
Faço que sim, dando de volta ao rosto a expressão do sentimento que contorna cada canto da espontânea criação dos seres sem face que me atormentam, ao mesmo tempo que me encorajam a olhá-las. Ao mesmo tempo que representam o passado a ser esquecido, no presente que não deixa a lembrança sair.
Tudo para ele já foi explanado em outras visitas. Desde os manequins de cera, ao remédio funcional e saboroso que ele passou para eu esquecer deles, entregando-me o mundo fantasioso dos sonhos, onde a necessidade de explicações inexiste. Falo para ele, também, de minha neta, um símbolo do que fiz.
Talvez ele seja tolo quando pensa que Eli é minha única esperança. O doutor não diz isso, mas está na cara dele quando a cito, e sei que aquela visita encurtada pela mãe não foi à toa e que não será a primeira.
Marta sofreu tanto ao me ter como pai, no entanto, não transfere isso à filha. Apesar da vista dela escurecer-se quando o assunto é o perdão, se rende ao fruto de sua luz, o querendo sempre brilhante e desnutrido de raiva.
O doutor sabe bem os motivos do último sentimento citado. Sabe o que fiz às pessoas. Não toca no assunto, mas tenho certeza que entende o símbolo que os bonecos de cera formam da minha vida pregressa.
— Aquele circo era tão alegre, não era? Mas tão frágil o coitado... Como uma criança...
Eu o falo, mas ele não responde. Logo se despede com rosto deprimido que disfarça num sorriso mal feito, como sempre depois de uma visita.
Ao ficar só no quarto, tenho a sensação de que o doutor não aparece para tentar minha cura, como um médico convencional. Sabe que minha neta é minha única chance, e aí vem aqui por piedade e me receita a química doce para eu ir para o mundo onírico, sem nenhuma intenção de tratamento. Tem dó, por isso tenta acabar com as criaturas que vivem a me lembrar de quem sou. Ele não pode fazer muito, apesar da bondade. Não é onipotente, como meu imaginário aplicado à sua figura poderia pressupor.
Por falar nisso, por que a enfermeira não chega logo? Quero parar de pensar!
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Há outros de mim (COMPLETO)
Ficción GeneralA vida do senhor Moraes é tentada por ele a esquecê-lo. Pena que ele não pode consumar isso sem assumir seu ego criador de mentiras, o causador de tudo que se formou em sua mente lívida e confusa. Os males do passado o fazem querer outra persona. É...