Primeiro capítulo: A busca.

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Era junho

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Era junho. As ruas do centro de Belém tingiam-se de um colorido único. Sorrisos espalhavam-se de todos os lados e a magia dessa época do ano se alastrava por toda a avenida, o brilho nos olhos de quem havia vindo de longe para prestigiar a beleza o arraial pela primeira vez era evidente, olhares que se encontravam em meio ao povo dançando com seus chapéus de fita e cantando o refrão em coro: "Do arraial que é do sol, do arraial que é da lua, do povo na rua, do meu guarnicê" logo perdiam-se, o sol quente não incomodava na cidade das mangueiras, a sombra e o frescor advindo do farfalhar das copas das árvores, e do rio Guamá, que banha as docas de Belém, garantiam o bem estar e o clima agradável. Para onde quer que se olhasse se via amor, alegria, energia. E foi lá, em meio aos batuques do carimbó, que aquela moça foi vista pela primeira vez, quem a via de longe, dançando e cantando, a chamaria de felicidade personificada, sorria com os olhos, com a boca, com o corpo, balançando a saia enquanto os cachos esvoaçavam e os poucos raios de luz que as mangueiras davam passagem, refletiam na sua pele cor de canela e nos olhos negros como a noite, que atraiam os olhares de todos ao redor pela vitalidade e a beleza que exalava, dançava sozinha, e parecia estar coberta de nostalgia, os olhares dela e de um rapaz que também estava por ali se encontravam, se perdiam, e acabavam sempre em sorrisos. Ao fim do trajeto, chegando à praça da república, o rapaz, com a pele morena de sol e olhos cor da esperança, aproximou-se com um sorriso.
—Queres água? —disse estendendo a garrafa à mulher.
—Não sabes o quanto. Obrigada! — disse a moça, sorrindo com os olhos.
—E tu podes me dizer o teu nome?
—É Raya, e o teu?
—Raoni. Bonito o teu nome! Combina contigo. — Raya sorriu ao notar a tentativa de flerte do rapaz. O tempo havia voado, e ao ver a hora, Raya levantou-se do gramado em sobressalto, limpando a saia com grama.
—Sinto muito Raoni, mas preciso ir, passou minha hora de chegar em casa. —E saiu correndo, deixando para trás seu chapéu de fitas.
Por dias a fio, Raoni buscou saber mais sobre aquela mulher, mas não achava pista alguma, é como se fosse apenas uma aparição, ninguém conhecia seu nome, mas sua busca não teria fim ali.
Ao amanhecer da semana seguinte, a rotina se perpetuava mais uma vez. Raoni levantou-se, um tanto zonzo, sentindo o azulejo frio embaixo de seus pés, resfriado pela chuva que caiu a noite inteira na grande Belém, deixando o clima frio para quem desde nascido, paraoara nato, nunca conheceu o frio abaixo de 23⁰ graus. Pôs a panela de maniçoba em fogo alto comportando água para ser aquecida e enfrentar o dia depois de um banho quente. Mesmo sabendo que ao meio dia iria desejar uma banheira de gelo, e que o sol se dividiria em um para cada belenense. Saiu de casa direto para a parada de ônibus, ainda pensando em Raya, em seus cachos, em seus olhos, buscando na memória, traços que se assemelhassem à alguém que já conhecia, enquanto seus pensamentos entravam no embalo do ônibus que seguia para a universidade federal do Pará, onde o rapaz estudava história, admirava a paisagem pela janela, as árvores que davam um charme arbóreo às ruas e os transeuntes.
Era dia de apresentação em sala, e o tema era mitologia amazonida. Cada um dos discentes tinha o dever de buscar um ser mitológico amazônico para contar sua história, onde surgiu, como surgiu, e sua importância para a perpetuação da cultura paraense. Atento, Raoni, que falaria sobre o grande criptido, o mapinguari, criatura vermelha que assola as florestas amazônicas, ouvia os colegas, até que uma apresentação em especial, lhe chamou a atenção. Uma das alunas, falava, com extrema paixão, da triste história de jurará-açu, uma deusa tupi-guarani a quem havia sido dado o livre acesso ao inferno, depois de libertar o rei do submundo, Anhangá, mas devido à contradição à tupã, que foi quem prendeu Anhangá, fora transformada em tartaruga, condenada sofrer nesta condição. Ao fim das aulas, Raoni foi o primeiro a levantar-se da carteira e seguir em direção à porta, quando sentiu a mão em seu ombro, que objetivava pará-lo.
—Tem dez minutos para conversar? —Falou Ana laliz, uma colega de sala de Raoni.
—Claro, vamos lá para fora. —E seguiram juntos para a capela ecumênica, em frente ao rio Guamá, ainda dentro da universidade, sentando-se no chão da capela, onde a brisa do rio tornava o clima agradável.
—Nunca tinha ouvido à respeito do mapinguari, esse trabalho me abriu os olhos sobre a história da mitologia paraense. —Ana falava com olhar apaixonado sobre o assunto, enquanto tirava da mochila uma vasilha com uvas frescas, e outra com sanduíches de peito de Peru.
—O mapinguari realmente não é tão lembrado quanto os demais, dá para acreditar que exista favoritismo até a respeito de personagens mitológicos, Ana? —Raoni falou, tirando da mochila uma garrafa de suco de maracujá. E a cena era basicamente a de um piquenique.
—Tu acreditas?
—Em que? —Raoni perguntou, com a boca cheia de uvas.
—Neles. Nos personagens da mitologia amazonida.
—De verdade? Nunca os vi. Mas assim como a existência qualquer Deus, os até mesmo a astrologia, entendo como uma existência homeopática.
—Como assim?
—Ah, Ana, nosso cérebro é incrível quando se trata de tornar realidade. Veja bem...— Raoni levantou-se para que pudesse gesticular e explicar melhor sua posição. —Os remédios homeopáticos não agem diretamente no problema, mas em sua raiz, eles buscam o reestabelecimento do equilíbrio do corpo, certo? Mas afinal, quem sabe disso? A maioria das pessoas entende como a cura imediata de um problema, e por acreditarem de fato nisso, torna-se realidade. Quando estamos profundamente abalados e acreditamos estar adoecendo, de fato isso acontece, como por exemplo choramos e sofremos por algo à ponto de o peito doer. Entendo as crenças folclóricas e metafísicas assim. Existem para quem acredita. Cresci ouvindo as lendas e conhecendo, teoricamente esses personagens, me apaixonei por suas histórias, e quando criança, implorava que aparecessem para mim. A ignorância é uma bênção, Ana. Uma benção.
—Tu és cético demais para acreditar. —A moça falou, rindo.
—E você é a garota dos contos de fadas, linda. Mas se isso te faz deixar de me achar tão cético e chato, me Encantei pela história de jurará-açu e passarei as férias em Capanema, na casa de minha avó, para que ela me conte mais a respeito dessa Deusa.
—Me conta tudo quando voltar, agora és meio cético, na minha visão. —Ana falou, dando ênfase à palavra "meio"
—Eu prometo contar tudo. —Disse, abraçando a garota.
—Agora, vamos, não quero perder o próximo ônibus Icoaraci Ufpa.
A tarde caiu, e com ela, ambos retornaram às suas casas. Com a chegada das férias de julho, Raoni resolveu visitar sua avó, para perguntar e conhecer mais da história de jurará, a qual o interessou tanto.
Sua vó o olhou com certo espanto quando viu o interesse do rapaz.
—Jurará foi uma mulher corajosa. Libertou Anhangá contra vontade de Tupã, e engravidou de um mortal antes ser transformada em um jabuti, escondeu o fruto desse amor amaldiçoando, sua cria meia humana, com a mesma maldição que tupã lhe deu, por pura mágoa, mas por ser meia humana, a menina só se transforma em tartaruga depois do primeiro raio de crepúsculo. Se livrando da forma de animal ao alvorecer. Diz a lenda, que essa semideusa perdida também tem acesso ao inferno de seu avô, Anhangá, e assim como sua mãe, se apaixona por humanos. Cuidado meu neto. — a velha senhora falou sorrindo enquanto o primo de Raoni o dava um susto, e todos caíam na gargalhada.
A tarde caía, e com ela, as crianças corriam para banho de igarapé diário, pulavam das mangueiras, comiam manga, goiaba, ingá e acerola, apanhadas das árvores frutíferas que cercavam o lugar.
Raoni se questionava sobre a identidade da moça, sentado no píer de madeira do igarapé da casa onde cresceu, molhando os pés na água, apreciando a paisagem de pôr do sol e o som das águas correndo. O igarapé era amplo, com algumas canoas amarradas ao tronco próximo do píer improvisado que levava ao meio do igarapé, ao anoitecer, a superfície do igarapé ficava reluzente, calma, e a neblina tomava conta, mas para Raoni, isso não passava do reflexo da luz do luar na água, naquela noite, Raoni acabou não indo para casa, dormindo ali mesmo, no Píer, e tendo sonhos bizarros com o Deus do submundo, Anhangá. Sendo despertado pelo canto de um urutau que pousou no píer olhando diretamente para o rapaz, com os olhos vibrantes e assustados, que pareciam prenunciar algo.
Ao alvorecer do dia seguinte, Raoni lembrou-se do segundo cortejo do arraial, que se daria na próxima semana, pensando, no caminho de volta para casa da avó, descalço na grama, se seria boa ideia voltar à cidade para acompanhar o cortejo e quem sabe ver Raya novamente. Ao chegar à casa, Moema, sua avó, o esperava furiosa em frente à casa.
—Onde estivestes Raoni? —Perguntou, preocupada.
—Fiquei no píer, pensando, e acabei dormindo lá minha avó, perdão.
—Entra, toma um banho e come! Fiz tapiocas e canjica para acompanhar o café. Está tarde tem festival do camarão na casa dos teus tios, no outro rio, tu vais?
—Eu vou com Inaiê e os meninos. —Falou, um tanto abatido. E sentou-se à mesa.
—O que te abate, Raoni? —Perguntou Moema.
—Sonhei com um homem que carregava carcaça de veado na cabeça, e Raya estava próximo dele, isso não me sai da cabeça.
Contou para avó, detalhadamente o sonho que tivera com o Deus do submundo, que até então não sabia quem era, mas ao descrevê-lo como apareceu em seu sonho, com a carcaça de veado na cabeça, e seus olhos flamejantes. Moema ficou estática, pois sabia do que se tratava. Tomou o neto pelo braço, e o levou ao igarapé, de volta. Enquanto Raoni estava sem entender o que ocorria.
—Inaiê, traz uma bacia de arruda em infusão agora.
A jovem o fez. E ficou lá ouvindo sua avó banhando Raoni, que permanecia em silêncio enquanto Moema lhe varria com as folhas de arruda, falando baixinho, palavras inaudíveis de repreensão aos maus espíritos e proteção.
Ao fim do banho, a velha pôs em seu pescoço um amuleto de muiraquitã, segurou seus dois braços, passou a mão em seu cabelo já molhado da água do igarapé e falou:
—Sei que vais buscar essa moça de quem não sabes nada. Não sei o que se passa em tua cabeça, mas agora, meu filho, estás protegido, e te abençoei com a boa sorte. Mas muito cuidado. Entidades mentem seus nomes para atrair, tu sabes e conheces a história de iara, e tantas outras encantadoras de homens para amaldiçoá-los com a morte.
—Tranquila minha avó, Raya era real. Bebeu da minha água, me olhou nos olhos. Sei o caminho que ando. A benção, minha vó?
—A benção é tua.
A tarde caiu, e Raoni se arrumava, junto com Inaiê e os gêmeos, no quarto com luz amarelada e a companhia de besouros que voavam pelo quarto inteiro com a chegada do inverno amazônico.
Ao chegar ao festival, tocava melody e haviam freezers repletos de cerveja e camarão fresco por todo lugar, as pessoas dançavam na beira do rio, e as bancadas com todo tipo de culinária envolvendo camarão emitiam um cheiro extremamente atraente.
—Quer uma cerveja, Oni? —Inaiê perguntou, oferecendo uma latinha.
—Obrigado. —O Rapaz agradeceu, sorrindo. Kauê e Kaiú brincavam ali por perto com algumas crianças enquanto Inaiê puxava a mão de Raoni para que dançasse com ela.
—Já fazem anos que não faço isso, Inaiê!! —O rapaz advertiu, levantando da cadeira.
—Ora vamos, foi você quem me ensinou!
Raoni então começou a conduzi-la no ritmo do melody e girá-la enquanto tocava "inesquecível é te amar" da banda anjos do melody, naquela tarde, o casal dançou até que o sol tornasse o céu alaranjado com sua partida. Inaiê pediu para que voltassem para casa, e assim fizeram. Ao chegar, Inaiê pediu para que Raoni a acompanhasse até o igarapé nos fundos da casa, Raoni andou até o fim do píer, sentando-se para molhar os pés na água turva, Inaiê, na beira do igarapé, se despia e pulava na água, indo até os pés de Raoni, nua.
—Entre na água. —A moça falou, olhando o rapaz, que nem a contestou, nos olhos. A música ainda era audível, já que o campo inteiro estava em silêncio, e o luar refletia na pele cor da noite de Inaiê. Raoni, ao entrar na água, a tomou nos braços em um beijo demorado e com gosto de cerveja, enquanto suas mãos exploravam o corpo da garota, que não conseguia calar diante dos toques de Raoni. Devido ao frio, saíram da água, deitando no píer.
—Por qual razão tens que ir atrás dela? — Nesse momento, um Urutau pousou no corrimão de madeira do píer, cantando, arrepiando ambos, que não se importaram, no calor da discussão, apesar de terem sentido.
—Inaiê, isso não deveria ter acontecido.
—Nós? Nós não deveríamos ter acontecido, Raoni?
—Não.
—Mas eu te amo! —Disse a garota, com a voz embargada.
—Eu não posso corresponder a isso, espero que um dia me perdoe.
Raoni levantou-se junto com a garota, voltando, em silêncio, para a propriedade de Moema, onde dormiram até o primeiro raio do alvorecer.
Raoni seguiu para a rodoviária, a avó, Moema,
acompanhava o afastamento do neto enquanto cochichava palavras de benção, mas sabia do perigo da busca. Sabia quem era aquela moça, Raya, retornara por vingança.
Moema chamou os gêmeos Kauê e Kaiú para pentear e catar suas cabeças à beira do rio enquanto era dia, e passou o resto do dia matutando qual a razão de a moça de cabelos cacheados e olhos negros que o neto havia encantando-se ter retornado agora, enquanto enchia de coquinhos a cabeça dos garotos, para aquietarem-se e permitirem que Moema limpasse suas cabeças. Mais tarde, naquele mesmo dia, Inaiê adoeceu, e disse à avó, que havia uma energia muito forte vinda de Raoni. Moema permaneceu calada, pois sentira o mesmo, e sabia do que se tratava, enrolou o dedo indicador em algodão, encharcou-o com andiroba e limpou a garganta da neta, enquanto no fogão fervia limão, gengibre, jambu e alho em panela grande, para que todos os netos tomassem junto com as tapiocas feitas para o jantar. O crepúsculo caiu novamente.

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