Quarto capítulo: A elevação do submundo .

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Ao retornarem para a casa, Raoni ficou abismado com a quantidade de carne que a senhora havia cuidado sozinha, não parecia possível, ali deveriam ter mais de 200 kg de carne de sucuri, como uma senhora daquele porte caçou, carregou e tratou uma su...

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Ao retornarem para a casa, Raoni ficou abismado com a quantidade de carne que a senhora havia cuidado sozinha, não parecia possível, ali deveriam ter mais de 200 kg de carne de sucuri, como uma senhora daquele porte caçou, carregou e tratou uma sucuri em tão pouco tempo era um mistério. Mas todos ali, menos Raoni, sabiam de onde havia vindo tamanha força. Raya e Moema foram, então, terminar de cuidar da carne, os gêmeos Kauê e Kaiú ficaram brincando com uma bola feita de seiva de seringueira na beira do igarapé, enquanto Raoni sentava-se na calçada da casa, junto com Inaiê, em silêncio absoluto, quebrado pela moça.
—Um real pelos teus pensamentos. —disse Inaiê, sorrindo.
—Como vai funcionar essa invocação?
—Vem comigo. — Inaiê disse, puxando o braço do rapaz e o conduzindo até a beira do igarapé, que havia sido isolado, tornando-se um lago, temporariamente, e enchido com patchouli e cachaça de jambu.
—O cheiro ficou mais forte. — Observou o rapaz.
—Exatamente, cheiro forte, oração, incorporação e apresentação dos ancestrais. E eles ressurgirão.
—Então você também?
—Meu Raoni...— A moça falou docemente, se aproximando e dando um beijo nos lábios do rapaz. —Todos nós somos deuses, entidades ou ancestrais. Inclusive tu! Só te foi escondido isso, pois não sabes o tamanho da tua força. Mais tarde, quando o primeiro raio do crepúsculo se iniciar, iremos incendiar as três fogueiras. Fogueira do submundo, fogueira do mundo médio, e fogueira do mundo superior. É através desse ritual, que a passagem entre os mundos se alarga, permitindo a comunhão entre seres de qualquer um dos mundos. Tu vais conhecer três deuses. Teu pai, Tupã, Deus do mundo superior. Anhangá, Deus do mundo inferior, e jurará, deusa da onisciência, filha de Anhangá. Tupã está furioso. E já sabes o motivo. Vem com a intenção de nos aniquilar. Tu tens a responsabilidade de escolher um lado. O de teu pai, ou o nosso. — Inaiê saiu, deixando Raoni, a beira do igarapé, que lá permaneceu observando os pássaros, assustando-se ao notar a presença de um urutau, novamente, o fitando com os olhos vibrantes e cantando incessantemente.
A noite começou a cair, como uma pena, devagar e suave, o clima começou a esfriar, e todos ali começaram a se reunir na beira do rio. Raya e Moema riam juntas, como se nunca houvessem sido separadas, enquanto montavam e incendiavam as fogueiras de abertura dos mundos. Após a montagem, os gêmeos, Inaiê e Raoni começaram a buscar as panelas de comida para oferecer aos deuses, posicionando-as à beira do igarapé também. Ao fim dos preparativos, Moema pediu a atenção de todos.
—Agora que está tudo pronto, eu preciso que me ouçam. O que faremos aqui é extremamente perigoso. Se alguém se ferir, não será ferimento curável neste mundo. Lembrem-se de apagar a fogueira do submundo logo que jurará-açu e Anhangá surgirem desse igarapé, para que nenhum outro ser do submundo escape. Unam suas forças. E acima de tudo, acreditem. O místico existe enquanto a crença o fortalece. — Moema fez menção para que todos dessem as mãos. E assim fizeram. Passou-se 20 minutos em silêncio absoluto. Só se ouvia o farfalhar das árvores e o cantar das guaribas, macacos que podem chegar a 1 metro de altura e tem um canto tão assustador quanto o urutau e a rasga mortalha juntos.
Raya abriu seus olhos, que já não tinham escleróticas, íris e nem pupilas, apenas um brilho púrpuro que era impossível de olhar continuamente. Flutuava e aquela neblina, da cor do brilho que seus olhos emanavam, circundava seu corpo emitindo sons de trovoadas. Seus cabelos cacheados foram desmanchando em um liso cheio, e cantava lindamente, enfeitiçando todos que sua voz alcançasse. Com a escuridão, Raya voltou à maldição. A neblina cobriu seu corpo por completo. A mulher ganhou uma carapaça enrijecida, os braços e pernas atrofiaram-se até assemelharem-se à patas, os olhos permaneceram púrpuros, mas agora eram redondos e pequenos. A pele antes macia e brilhante convertera-se em uma espécie de couro seco e escamoso coberto de queratina. A semideusa voltou à forma animal.
Moema, por sua vez, soltou do coque que sempre amarrava as madeixas, o grande véu, e revelou o cabelo que media mais de dois metros, seus olhos, assim como o de todos ali, atingiu a cor púrpura, a velha mastigava folhas de coca, e chacoalhava um cajado de quartzo rosa.
—Eu sou Yebá belö, fundadora do universo, a mulher ofuscada pela adoração à tupã, de dentro da minha morada de quartzo, dei vida aos seres humanos a partir da matéria da Erythroxylum coca, desci à terra como humana, e adotei o codinome de Moema após ver meu nome ser ofuscado por Tupã. Por vingança, me apaixonei por seu arqui-inimigo, Anhangá, e dei a ele uma filha, que posteriormente me daria uma neta, para que uníssemos forças afim deter o supremo. Mas como toda mulher, meu instinto materno não pode deixar que o supremo, em seu infinito egoísmo, abandonasse uma criança. Acolhi Raoni, que nasceu no mesmo período que Raya, e o criei. Mais tarde o libertei, para que estudasse, e entendesse suas origens não através de mim, mas por sua própria curiosidade e perspicácia.
Yebá então elevou-se sendo envolvida pela neblina púrpura, transformando-se em onça pintada.
O ar ficou rarefeito, e foi ouvido o início de uma música. Era lundu, o ritmo encantado. Tocava lundu marajoara, e Inaiê com sua saia longa e os seios nus, dançava sem tirar os olhos de Raoni um minuto sequer, enfeitiçando-o tomando sua mão, e fazendo-o dançar aquele lundu junto da moça, enquanto o ritmo acelerava, e a mulher convertia-se aos poucos, em uma jiboia. Entrelaçava-se no corpo do rapaz, sua pele negra e macia agora dava lugar à lisa e escorregadia pele estampada de jiboia, seu olhar púrpuro, tinha pupilas elípticas, e sua língua, um dos objetos de sedução na negra de cabelos cacheados, dividira-se em duas.
—Eu sou o principal espírito amazônico. Represento o prazer e a beleza. Sou sensível à feromônios então sei te ler quando estás tão nervoso e amedrontado quanto agora. Mas ainda não acabou. —A cobra falou.
Os gêmeos, Kauê e Kaiú, também foram tomados pela neblina púrpura, que os cercou, alongando o corpo dos meninos, o que transmitia uma visão bizarra. Os braços dos gêmeos atrofiaram-se até converterem-se em pequenos braços com patas, a região da boca e do nariz alongou-se absurdamente, e a pele infantil tornou-se verde e escamosa. Os meninos tornaram-se jacarés.
Ao fim do ritual de transformação, todos começaram, em coro, a proferir palavras em idioma indígena. O canto do urutau tomava conta do lugar, alterando o trajeto das ondas sonoras e fazendo com que o som parecesse vir de todos os lados.
A neblina púrpura agora tomava conta de todo o lugar, e o igarapé borbulhava como um caldeirão em fogo alto. As barreiras postas haviam sido rompidas, dissipando o cheiro forte de cachaça de jambu e patchouli.
—Eles chegaram. —Yebá, a onça, falou.

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