Segundo capítulo: A descoberta.

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Chegado mais um domingo de arraial, Raoni colocou na cabeça o chapéu que Raya houvera deixado para trás e partiu em busca da moça, sentindo que a encontraria novamente, com a cabeça repleta de confusão e dúvida

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Chegado mais um domingo de arraial, Raoni colocou na cabeça o chapéu que Raya houvera deixado para trás e partiu em busca da moça, sentindo que a encontraria novamente, com a cabeça repleta de confusão e dúvida. Mas quando chegou às docas, seus olhos encontraram os dela quase que instantaneamente, no entanto, manteve-se distante, apenas a observando dançar, olhando cada traço da sua pele, que tinha desenhos marajoaras grafados com hena, e seus olhos, que apesar de pretos, pareciam ter uma espécie de roxo místico quando de encontro ao sol. Raya se aproximou do rapaz sem que ele percebesse, segurou sua mão e o levou para meio do cortejo, e lá, dançava, girava, o que, na visão de Raoni, funcionava feito um feitiço, ele via em câmera lenta, o olhar, a boca carnuda entreaberta, a cintura rebolando e o chamando para mais perto, e nem percebeu quando tudo foi escurecendo, aqueles olhos pretos o fitando, enfeitiçado, tentava se mover, mas não conseguia, nada o prendia, mas era como se estivesse em um episódio de paralisia do sono, sua boca não emitia sons apesar de querer gritar, e sua cabeça só fazia ecos da voz da moça, de seus olhos, de sua saia.
—Porque tu me segues, homem? — Ele ouviu, uma voz doce, ainda sem ver nada além daqueles olhos e aquela neblina roxa que se espalhava ao seu redor enquanto Raoni estava imóvel
—Eu apenas queria saber mais de ti, o que tá acontecendo, o que é isso?
—E o que queres saber? — A voz ouvida oscilava entre um tom e outro, em um eco sem fim, e a cada palavra dita, o corpo de Raoni arrepiava-se inteiro.
—O que tu és!
—Uma pessoa! Como tu! —Em seguida foram ouvidas risadas, e nesse momento Raoni lembrou da história contada por Moema, e da advertência obtida pela senhora
—Não és uma pessoa! Pessoas humanas não fazem isso.
—Sei que tu és neto de Moema.
—O que tem minha avó?
—Eu preciso encontrá-la. Leve-me até ela.
—Quem tu és? O que queres?
—És tu quem me procuras, homem! Deveria eu perguntar-te o que queres tu de mim.
—Me Encantei por ti, mas preso não tenho como te mostrar.
—Que bobagem a tua. Segue teu caminho, não seja tolo. E diga à Moema, que a neta de Anhangá precisa da ajuda dela, e retornou do submundo para procurá-la, além disso, os animais da mata de Capanema correm um risco eminente. Raoni estremeceu inteiro, buscando na memória coisa qualquer sobre aquela moça, mas não sabia o porquê nunca houvera lido ou ouvido nada a seu respeito antes de sua avó falar sobre a filha perdida e amaldiçoada de Jurará. Mas a moça ser a filha perdida explica o fato de ter desaparecido como neblina pouco antes do crepúsculo na última vez que se encontraram.
Raoni despertou em sua cama, ofegante, olhando ao redor e procurando a moça, ou qualquer pista que o convencesse de que o que acabara de viver não fora só um sonho. Mas ao buscar, atordoado, o chapéu de fitas da moça, não o encontrou em parte alguma. Ela tomara de volta o que era seu, mas não concluíra seu objetivo no mundo médio. Qual seria ele, e o que tinha a ver com Moema? O que sua avó lhe escondia e por qual razão o havia coberto de banhos e amuletos protetores se não soubesse o que estava prestes a acontecer? Raoni enlouquecia ao passo que queria entender tudo o que estava acontecendo, deitou e aos poucos, perdido em pensamentos, adormeceu.
Ao amanhecer, Raoni seguiu para a rodoviária, tomando o primeiro ônibus para Capanema, em busca de respostas, o cansaço tomava conta de seu corpo devido os dias sem dormir e toda a confusão que vivenciava, no caminho de terra batida, andava com sua mochila nas costas fazendo o caminho até a casa de sua avó, Moema, tentando processar tudo o que acontecia ao mesmo tempo, foi quando ouviu a respiração e o andar que lhe era familiar desde a infância, agachando-se ao perceber a onça pintada que viu crescer, que ainda que fosse livre, visitava a velha propriedade para comer todas as tardes, coincidindo com a chegada do rapaz, que abraçou e acariciou o felino e assim seguiu caminho ao passo que admirava a vegetação ao redor. Ao chegar à casa, Moema olhou o rapaz e perguntou, preocupada:
—O que te abate, meu neto? Por que voltaste tão cedo? — perguntou a velha, olhando para o felino, que a encarava como se esperasse um cumprimento.
—Raya te procura, minha avó. Diz ser neta de Anhangá, filha de jurará-açu. A filha perdida que voltou do submundo, te procuro para saber o motivo, porque te procura uma semideusa, e o que faz no mundo médio. Porque me encantou, e sinto como se já a conhecesse? Além disso, disse algo sobre os animais estarem em perigo. —O garoto falou, olhando para a onça, que parecia entender o diálogo e esfregava o dorso da cabeça em sua perna, como se o quisesse avisar de algo.
—Filho, senta-te, chegou a hora de saberes a verdade sobre tua história, a tua relação com o místico, quem sou de verdade e porque tudo isso está acontecendo. —A velha falava enquanto servia café da garrafa térmica em uma pequena xícara e empurrava até o rapaz.
—Muitos anos atrás, quando se deu o início do cortejo do arraial do pavulagem, em 1987, o primeiro deles, conheci um homem, cortês, bonito, gentil e enfeitiçado. Ele me encantou, me pôs em um transe, me apaixonei por aquele homem. E o beijei. Voltei pra casa com ele. Me entreguei cegamente, como se estivesse hipnotizada. Desse amor, nasceu uma menina. E ele lhe deu o nome de Jurará-açu. —A mulher agora tirava algumas peças de carne da geladeira pondo-as sobre uma tábua de carne e cortando em pedaços menores. —Eu era muito nova, não tinha como cuidar da menina. Ele me mostrou o submundo, me ofereceu a coroa de rainha, deusa do submundo, eu não entendi aquilo tudo, estava apavorada, apenas corri como se não houvesse saída, assustada. Ele me pôs em seu colo, me acalmou e proferiu, me olhando nos olhos. "Minha Moema, tu não tens que ficar, mas sempre te amarei, e farei com que sua filha te procure um dia, para te agradecer por todo amor e calor que me destes." Então eu deixei que ele cuidasse dela. E ele, cortês que era, levou jurará com ele ao submundo, me libertou. E deu à garota, a habilidade de onisciência e petrificação. — Enquanto contava a história, a mulher alimentava a enorme onça que os fazia companhia, e não demorou muito para que os outros animais que viviam nos arredores da propriedade se aproximassem pelas janelas e portas, da mesa. —Jurará viveu lindamente sua vida, era uma mulher deslumbrante, cabelos longos, lisos cor de ébano, não demorou para atrair a atenção de um humano, se apaixonar, e engravidar. Desse amor, nasceu a filha perdida, semideusa, logo depois, Anhangá foi preso por Tupã, Jurará, furiosa por não ter tido tempo de apresentar a filha ao pai, libertou-o, comprando o ódio de Tupã, que a transformou em tartaruga, e ela, com ódio e mágoa por viver nessa condição, e de nunca ter tido a mãe por perto, designou à filha a mesma maldição. —Uma arara aproximou-se, e a mulher lhe ofereceu algumas bolachas de sal, e bananas em pedaços para o pequeno mico que subiu em seu ombro. —Mas devido ser semideusa, a maldição funcionou pela metade. E a garota herdou de sua mãe as mesmas habilidades. Quando cresceu, jurou vingar a mãe e o avô, e como jurará não teve a chance de me encontrar, Raya virá a minha procura, tu, meu neto, não tens laço sanguíneo comigo. —O papagaio e todos os outros animais ali presentes, a ouviam em silêncio, como se estivessem sob algum tipo de encantamento. —Tu és o filho perdido de Tupã que adotei depois que tupã viu, que no futuro te apaixonarias por Raya açu, neta de Anhangá, te deserdando, e te condenando à mortalidade, a ser humano, sofrer, envelhecer e morrer. É chegada a hora da vingança à Tupã, e eu conto contigo, filho.
Raoni se viu perdido, era filho de Tupã, o Deus tido como supremo, teria que traçar uma vingança contra o próprio pai que o negou por uma visão do futuro.
—E quanto ao que Raya disse sobre eles estarem em perigo? —Raoni disse, olhando ao redor.
—Bom... —A velha Moema sentou-se e a preocupação modificou sua expressão instantaneamente. —Na noite passada ouvi tiros e máquinas, temo que a floresta esteja sendo desmatada e por isso estes indefesos vêm se abrigar aqui, os tiros pareciam ser de espingardas, mas caçar para comer não faz barulhos ininterruptos de tiro, ouvi choro de animais como se tivessem sido amarrados, e as araras que te acompanham desde a infância, e até os velhos urutaus têm sumido da minha janela.
—O que acha que está acontecendo?
—Eu achei que você pudesse me dizer.

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