Sexto capítulo: O passado explica o futuro parte 2, o anjo de sangue.

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Tiros foram ouvidos

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Tiros foram ouvidos.
Boitatá, que caçava a janta de sua família, voltou para sua morada, se deparando com a cabeça de sua esposa, uma metamorfa que só se transformava em cobra durante a noite, naquele momento, estático, boitatá, segurando suas lágrimas, pensou no horror e o medo que sentirão os caçadores que fizeram aquela atrocidade, quando, ao raiar do dia, virem que o corpo morto que puseram no freezer é, na verdade, de uma mulher decapitada, e não mais da cobra que pensaram haver caçado. E na filha, a pequena Inaiê, que estava em sua forma humana por ainda não dominar a transformação de forma, a pequena se aconchegava próximo da cabeça decapitada da mãe, com um sangramento entre as pequenas pernas, que perturbou o grande boitatá, a pequena havia sido violentada, e sua esposa morta. Naquele momento, o sentimento de culpa e raiva de si mesmo o consumiu. Como pode não estar perto para proteger a própria família? Como pode deixar que aqueles homens machucassem sua pequena filha, indefesa, e cruelmente decapitassem sua esposa, sua consciência o mandava que buscasse vingança. Mas naquele momento, só precisava buscar um lugar seguro para Inaiê dormir. Correu para uma caverna ali por perto, e a noite consumiu a floresta, inundada pela chuva grossa e incessante.
A chuva havia caído, como de costume, a noite inteira, a floresta exalava o aroma característico de grama e terra molhada, entre as folhas orvalhadas, boitatá se esgueirava com a pequena filha, Inaiê, em seu dorso, que se segurava em suas grossas escamas com as pequenas e delicadas mãos. O criptido se rastejava em profunda agonia pelos caminhos alagados da floresta amazônica, com lágrimas de lava escorrendo pelos olhos, em busca de Yebá. Boitatá desceu ao igarapé, e seguiu sua corrente, cansado de noites a rastejar-se em círculos buscando por alimento, busca dificultada pelo desmatamento que os grileiros causaram à sua mata. E seguindo a corrente do igarapé encantado de Yebá, emergiu, revigorado, encontrando assim, a propriedade da mulher. Rastejou-se até sua porta, rugindo, para chamar-lhe a atenção. Yebá, finalmente ouvindo-lhe, correu para atender.
—Yebá, minha querida, eu te imploro que cuide da minha menina, eu não tenho capacidade de educá-la e cuidá-la depois que sua mãe morreu nas mãos daqueles caçadores, eu preciso da tua ajuda para que eu possa buscar vingança por minha esposa e por minha filha, que foi violentada até a inconsciência, e largada para morrer. — O grande boitatá rugia as palavras, chorando lava e sangue vivo, explicitando o tamanho de sua dor e agonia. Yebá tomou então a menina nos braços com rapidez, preocupada com o fato de a pequena ainda estar inconsciente.
—Boitatá, eu te garanto que tua filha aqui está em segurança. Será cercada de amor e cuidado, e tu poderás vir vê-la sempre que sentires saudade de tua menina. Vá em paz, te abençoo para que alcance teus malfeitores, e cause a eles a mesma dor que te causaram.
Boitatá então seguiu seu caminho de volta ao local onde encontrara Inaiê e a esposa morta, farejando e buscando pistas que o mostrassem o caminho tomado por aqueles homens, já que as pegadas haviam sido apagadas pela chuva, e o cheiro foi ofuscado pelo aroma de terra molhada e sangue. Boitatá então entrou novamente no igarapé, e seguiu seu rumo contrário, buscando algum barco, ou moradia, ali por perto, na que aqueles homens, para caçar ali, conheciam aquelas matas, e para conhecer, deduziu, não viviam longe.
Inaiê permanecia desacordada. Yebá, delicadamente lavou a menina no igarapé, pôs um amuleto de muiraquitã em seu pescoço, a menina abriu os olhos, assustada, chorando e gritando. Yebá a abraçou forte.
—Passou minha queria, passou, acalma teu coração.
Repetindo, suavemente a frase, até a criança acalmou-se.
—Quem é você? Onde está minha mãe? Onde está meu pai?
—Seu pai precisou que eu cuidasse de você enquanto ele resolve algo importante. Pediu para que fosse uma boa menina. Eu prometo te proteger, pequena.
Mais tarde, naquele mesmo dia, Inaiê conheceu Raoni, brincaram no igarapé, de fazer esculturas com argila do fundo, comeram frutas, e aos poucos, naquela mesma tarde, a menina ia se curando.
A noite chegou, e com ela, o desespero, Inaiê chorava e gritava de saudade dos pais, e Yebá não podia conter as lágrimas, era doloroso ver um ser tão pequeno e indefeso sofrer daquela forma.
Certa noite, após passar todas as anteriores em claro tentando fazer com que Inaiê se acalmasse, Yebá adormeceu profundamente, não podendo ouvi-la. Raoni levantou-se de sua cama, e foi até a garota. Tomando-a no colo começou a cantar para ela suavemente enquanto fazia cafuné em seus cachinhos, até adormeceram juntos. Ao amanhecer, Yebá entrou no quarto para saber como estava a pequena, que dormia, chupando dedo, tranquilamente, ao lado de Raoni, que também dormia. Nos dias que se seguiram, cozinharam juntos, brincaram, e fortaleceram cada vez mais seus laços. Até que um dia, Raoni foi para a cidade a fim de estudar, e a relação, que era de tamanha proximidade, se reduziu aos encontros somente nas férias.
Crescer ao lado de Raoni, que a protegera e a acalmara desde sempre, fazendo o papel que seu pai não pode fazer, a tornou profundamente dependente de seu amor, de sua presença. A ausência de Raoni ardia como fogo no peito de Inaiê, que já não chorava como aquela criança de anos atrás. Mas baixinho, a noite inteira, e sentindo uma dor diferente. A dor da falta do conforto que o colo do rapaz lhe proporcionava.
Anos se passaram, e Boitatá retornou, em busca da filha, que já era uma mulher, para pedir-lhe ajuda. Anos de busca pelos malfeitores nunca resultaram em absolutamente nada. E agora precisava das habilidades da garota. Sem saber que as tinha, Inaiê assustou-se.
—Mas meu pai, de que habilidades tu falas?
—És metamorfa, Inaiê. Tens o poder do encantamento, e super força quando na forma animal.
O rosto da garota enrubesceu. Olhava estática para o pai, com a expressão que transparecia dúvida e medo.
—Eu te mostrarei, minha filha. Suba no meu dorso.
Inaiê subiu no dorso do pai. Que tomou o caminho do rio, durante o caminho, Inaiê abraçada no pai, conversava.
—Porque me deixastes com Yebá, meu pai?
—Hoje te mostrarei tudo.
Ao chegarem na morada de Boitatá, ele a olhou nos olhos e disse: —O que queres primeiro? Ter a visão de tudo o que ocorreu para víveres com Yebá, ou provar dos teus poderes?
—Me mostra a verdade, pai.
O boitatá se aproximou da filha, com a cauda, fechou delicadamente seus olhos e tocou em sua mão.
—Aperte minha cauda e só solte quando não quiser mais ver nada.
Inaiê o fez. E viu. A mãe morta, ela violentada, o pai assustado. Viu tudo. O rosto daqueles homens, o cheiro. Como em um flash doloroso de imagens em sequência.
—Chega! — Gritou, chorando.
—Filha eu sei o quanto dói. Minha missão é encontrá-los. Tentei fazer isso sozinho por anos, te protegendo ao pedir que Yebá te cuidasse, mas percebi que sem você, eu estou rastejando em um ciclo sem fim. Não vi os rostos deles, não sei o cheiro deles, não tenho como atraí-los, não como tu, filha. —Boitatá chorava, e falava com a voz embargada.
—Assim o farei, mas depois disso, voltarei para Yebá, não ficarei, meu pai. Te amo. Mas deste lugar, só tenho más lembranças.
—Eu aceito sua escolha, sou culpado. Minha missão era proteger tu e tua mãe, eu falhei, minha filha. Como pai, como marido e como homem. — Boitatá olhou-a tristemente, buscando, com todas as forças, compreendê-la.
—Me ensine a dominar minhas habilidades. Nós os encontraremos. E os faremos sofrer.
Uma semana de treinamento se iniciou. No primeiro dia, boitatá a ensinou a usar a concentração para alcançar a forma animal.
—A transformação tem três níveis de fluidez: o primeiro é quando tu estás inconsciente e sem habilidade. O segundo, é quando tu começas a prestar atenção. Entras no nível consciente e sem habilidade. E o terceiro e último, é quando estás inconsciente e com habilidade. Já não precisará pensar ou se esforçar para alcançar a transformação, ela será fluida. E esses três níveis não servem somente para tua transformação, mas em tudo que na vida precises por esforço para fazer.
Após a décima tentativa, exausta, Inaiê abriu os olhos, revelando a pupila elíptica, e a íris púrpura. Finalmente conseguira. Olhou para os próprios braços e pulou no dorso do pai, em felicidade extrema por ter alcançado sua forma.
No segundo dia, treinou encantamento e manipulação.
—Nada pode tirar tua atenção. Mantenha teus olhos na vítima, a atraia com os olhos, mantenha uma sobrancelha arqueada, dê sensualidade. E quando conseguires, finalmente, não tenha dó.
No terceiro e no quarto dia, treinou tortura, esfarelamento de ossos através do enrolamento de seu corpo ao redor da vítima, e o enroscamento até a morte. O que exigia MUITO da força de Inaiê, que, portanto, treinou dois dias. Com árvores e rochas, até alcançar a exatidão dos movimentos.
No quinto dia, Inaiê treinou todas as habilidades simultaneamente até a exaustão.
No sexto dia buscou em sua memória o cheiro daqueles homens, treinou sua habilidade de memória, até reconstituir, perfeitamente, o rosto e o cheiro dos malfeitores exatamente como eram.
No sétimo dia, partiram em busca dos homens.
Inaiê os farejou, conduzindo o pai até uma choupana velha no meio da mata densa, na frente da construção, haviam rifles enferrujados e não dava para ouvir se havia alguém ali dentro devido a queda da cachoeira que despencava próximo da li.
Esgueiraram-se pelos fundos da casa, chegando até uma janela, onde Inaiê se aproximou e confirmou a presença de quem procuravam. Boitatá então expandiu-se até que tivesse tamanho suficiente para cercar a propriedade. Inaiê então quebrou os vidros das janelas, e quando os homens pensaram em empunhar as armas, Inaiê os encantou, paralisando-os, em seguida, transformou-se em serpente, e envolveu-os no abraço torturante da morte. Tirou-os do transe para que sentissem dor. Os homens gritavam em desespero enquanto seus olhos saltavam das órbitas e seus rostos tomavam cor de hematoma. Com a cauda, Inaiê, violentamente invadiu o corpo de um, que soltou um grito de horror, que aos poucos perdeu o som, desfalecendo enquanto jorrava sangue pelos lábios após ter todos os órgãos perfurados, e a cauda de Inaiê saindo por sua boca.
Soltou-os, o outro, ainda vivo. Tremia enquanto a cor voltava ao rosto, olhando, incrédulo para o outro homem, com os ossos quebrados, o ânus dilacerado, esguichando sangue pela boca.
Inaiê voltava ao seu corpo de mulher.
—Tu tocaste no meu corpo sem minha permissão, me tirou minha infância, meus pais, minha vida. E agora, assim como fiz com teu amigo estuprador, farei contigo. Tu mereces sentir essa dor.
—Eu te imploro, misericórdia!!! —Inaiê arqueou uma das sobrancelhas, olhando-o nos olhos. Fez beiço de chateação, imitando uma criança, e depois, possuída pelo ódio, soltou uma gargalhada demoníaca.
—Não tivestes misericórdia de mim. E eu era apenas uma criança. Porque eu teria de ti?
Antes do homem dizer qualquer palavra, Inaiê o pôs em transe novamente, os olhos do homem tornaram-se púrpuros, e sua face encheu-se de veias escuras, Inaiê ordenava, e o homem fazia, enquanto a mulher assistia sentada ao espetáculo de vingança que armou.
—Arranca teus dedos com aquele alicate. — O homem o fez. Cada dedo arrancado o fazia urrar de dor. No sétimo dedo, Inaiê já havia sido tomada pelo ódio e pelo tédio. Resolveu intensificar a tortura.
Paralisando o homem, apenas permitindo que sentisse dor e gritasse, Inaiê, buscando pela choupana, o próximo objeto de tortura, encontrou, pondo um sorriso no rosto. O mesmo Machado que decapitou sua mãe.
Inaiê desenhou, com a lâmina da faca, asas nas costas do homem, em seguida, separando a pele da carne, deixando as costelas à mostra. Em seguida, pendurou o homem nos ganchos de carne que haviam dentro da casa por suas "asas"
—Que bela águia de sangue tu és! —Falou, ao tirar o homem do transe. Fazendo-o soltar um grito de horror. —Ou melhor, anjo de sangue. Finalmente um anjo. Agora sim! Não farás mal a mais ninguém. —Falou, enterrando o facão no corpo do homem, e deixando a casa. Montando no pai, que a levou de volta para a casa de Yebá.
—Agora, minha filha. Tu és uma guerreira. Eu sempre estarei olhando por ti.
—Eu te amo, meu pai. —Inaiê falou, abraçando o grande boitatá, enquanto de seus olhos escorriam lágrimas de felicidade.

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