Capítulo XXIII

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Malika Sirhan

É extremamente estranho abrir os olhos e se ver num ambiente completamente diferente do que se estendia diante de você nas últimas semanas.

Em vez da neve, o calor. Em vez da maquiagem e das lentes, aqui estou livre para exibir meus olhos violetas e ser quem eu realmente sou. E, em vez do som de uma base funcionando como uma colmeia repleta de suas operárias, é o som suave de uma cidade multifuncional e harmônica que acompanha o meu despertar.

Arrasto os pés para fora da cama e me levanto de uma vez. Observo através da vidraça da janela várias pessoas caminhando nas belas ruas, assumindo seus postos, exercendo suas funções. Um homem jovem conduz uma bicicleta com uma cesta repleta de alimentos. Uma mulher carrega seu bebê num sling enquanto caminha calmamente pela praça. Um grupo de crianças encaminha-se para o prédio escolar, falando alto e correndo, visivelmente felizes.

E mesmo num momento de luto coletivo, é possível perceber pela forma de viver que todos aqui são felizes. Eles vivem em paz.

São uma sortuda minoria.

Desço as escadas da casa, indo na direção da cozinha, pensando em como tudo é estranho. Acabei me acostumando a dormir no chão de um galpão gelado; mas aqui, tive acesso a uma cama confortável numa casa ainda mais acolhedora. Aparentemente, meus amigos simplesmente ganharam esta residência ao chegar. Embora eu fique muito feliz pela sorte deles, me pergunto: será que essas pessoas são realmente confiáveis? Elas simplesmente acolheram-nos de braços abertos sem querer nada em troca?

A ingenuidade que me perdoe, mas o que eu vivi na minha vida não me permite deixar de ser desconfiada.

E por falar em desconfiança...

— Bom dia, Malika.

— Bom dia, Daniel — respondo.

O rapaz bate um creme alaranjado numa tigela metálica, de costas para mim, voltado para o balcão da cozinha. Questiono:

— Como sabia que era eu?

— Só há você e eu aqui — Daniel diz, sem me olhar. — Depois da festa de ontem, todos acordaram tarde, exceto a Sophia, que comeu e saiu cedo, muito empolgada, por sinal.

O relógio aponta que já são 13:28, e eu me sobressalto com o adiantado da hora. A mudança súbita de fuso me deixou completamente desregulada. Daniel prossegue:

— Os demais devem ter ido cuidar de seus próprios assuntos. Então só podia ser você.

Ele pousa a tigela sobre o balcão, e pega duas bandejas com queijo de dentro da geladeira. Mordo o lábio e dou um passo à frente.

— Daniel, eu queria te pedir...

— Não — ele me corta, suavemente, mas com firmeza. — Não peça. Não precisa.

O meu coração acelera, e sinto meu rosto ficar branco.

Daniel começa a ralar os pedaços de queijo quando eu recomeço a falar.

— Mas eu realmente sinto a necessidade de te...

Ele larga o queijo sobre a tábua e, pela primeira vez desde chegamos aqui, Daniel se volta para mim e olha bem no fundo dos meus olhos. Ele sustenta o olhar com muita firmeza. Sem vacilar. Sem dúvidas. Sem desconfiar.

— Não precisa se desculpar, Malika. Você não confia em mim. E eu sei que isso não mudou em questão de dias. Então não precisa tentar ter meu perdão por algo que você não tem por mim, e provavelmente nunca vai ter.

Sinto-me envergonhada e ofendida, e disparo:

— Você não tem como saber disso, Daniel. Claro que posso passar a confiar em você.

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