Divided

Capítulo IV

Anippe Mahlab

A minha vida mudou quando meu "eu" se transformou em "nós".

É difícil explicar exatamente em que ponto eu descobri. A partir de certo momento, eu simplesmente soube. Era como se uma pequena voz começasse a aparecer dentro de mim, me dando total certeza de que eu não estava mais sozinha. Uma forma mais abstrata da LPA que divido com o Vlad. Como aquela certeza que você simplesmente tem, de quem você é, qual sua identidade, seus valores, suas raízes. Foi tal certeza que tomou conta do meu coração quando percebi que estava grávida.

Abro os olhos lentamente. O vento sacode as árvores do lado de fora da minha janela, e vejo a sombra das folhas à distância balançando pela vidraça. Olho ao redor; meu quarto, embora seja bem diferente do que eu ocupava na minha casa no Cairo, me deixa muito confortável. Há um roupeiro no canto, uma pequena mesa com uma cadeira simples, um grande espelho na parede e uma cama consideravelmente confortável. A janela permite que eu visualize alguns campos de cultura ao longe, outras casas parecidas com a nossa, e um trecho do rio que corta a propriedade em alguns pontos.

Sento-me na beira da cama, lentamente, e encosto os pés no chão frio. Curiosamente, mesmo eu não esperando nem desejando isso pra mim agora, eu aceitei muito rapidamente. Daí, comecei a pensar em formas de contar para o Akira, quando a avalanche de mudanças aconteceu: a descoberta da Ligação Psíquica Artificial com o Vlad, termos que nos mudar (de novo), o grupo separado, tanta confusão na minha cabeça. Culminando no nosso término. Algo que eu não queria ter feito, porque o meu coração ainda queima de tanto amor que sinto por ele. Mas não me parecia certo, estar tão dividida e infeliz, e prendê-lo nessa situação. Tive que deixá-lo ir.

Então, simplesmente decidi aguardar um pouco mais.

Começou a passar pela minha cabeça que talvez eu nem precisasse contar pra ele. Eu conseguiria cuidar desse filho sozinha. Mas aí, o Vlad me deu um verdadeiro tapa na cara na última vez que nos falamos em sonho. Sim, a criança merece ter um pai. E eu já tentei conversar com ele a respeito, mas ainda não consegui fazê-lo. No dia em que fui no quarto do Akira para falar sobre isso,  a conversa virou uma discussão de uma hora para a outra, e perdi totalmente a vontade e a coragem de falar. Desde então, temos mantido uma aparente boa relação na frente de Bernard e Aisha - afinal, com tudo que vem acontecendo, a última coisa que precisamos é de conflito entre nós. Mas até mesmo na nossa busca infrutífera pela Ana Medeiros alguns dias atrás, um clima estranho perdurou entre nós. Ainda pior, quando estamos sozinhos, mal nos falamos. 

Por mais que isso fermente dentro de mim e guardar esse segredo me deixe ensandecida às vezes, preciso fazer isso certo. No momento certo. Não é o meu bem-estar que mais importa para mim a partir de agora.

Isso sim é uma enorme mudança na minha vida.

Ponho-me de pé e olho no espelho. Não há nenhuma mudança na minha aparência, não ainda. Ainda estou nas primeiras semanas, então não aparece nada em minha barriga. Mas encaro meu reflexo por alguns segundos. Faço o que venho fazendo desde que descobri minha habilidade de mimetizar certos rostos: concentro-me e aos poucos imito a aparência da Aisha, e em seguida, da Malika. Assusto-me ao perceber que imitar a aparência da Malika foi um pouco mais difícil.

Como se ela estivesse sumindo da minha memória.

Com um arrepio, tento algo que não havia tentado antes. Um rosto que já não vejo há tanto tempo, mas que está carimbado na minha memória para sempre, como uma tatuagem. Fecho os olhos e imagino: a pele de um dourado quente, como se ela tivesse sido beijada pelo sol. Os cabelos cor de mel e lisos caindo pelos ombros, os três sinais perfeitamente alinhados na pele do pescoço. Um sorriso de lábios grossos e dentes alvos, ligeiramente montados na frente, e algumas pequenas rugas de riso ao redor dos olhos. Olheiras que nunca a abandonavam, olhos castanhos com um discreto halo violeta ao redor das írises e sobrancelhas que ela dominava com maestria, dando expressão a tudo que ela queria exteriorizar.