𝕮𝖆𝖕í𝖙𝖚𝖑𝖔 𝖚𝖒

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Capítulo um
Ou

"Wearing yellow to a funeral"

Dexter Charming

Ninguém teve tempo de ter uma reação decente com as coisas acontecendo tão rápido. Pela primeira vez pareceu que Apple White não tinha uma solução para um problema, nem uma sugestão, nem nada. Estava muito diferente do normal, quando ela era radiante, e parecia uma alma imortal.
Seu corpo foi recolhido para fazer uma autópsia, confirmando o óbvio: a flecha havia causado sua morte, acertando sua artéria em cheio e bem, o resto da história é meio óbvio. O corpo ficou longe por dois dias, então minha mãe exigiu-o de volta para fazermos um funeral digno para alguém digno, como ela merecia. Darling estava em estado de choque, não expressava nenhuma reação, nem chorava, nem ria, estava incapaz de fazer qualquer coisa a não ser encarar a parede, estática.
E aí veio o funeral, onde várias pessoas vieram de vários lugares para ver os últimos momentos que passariam com uma amiga tão querida como Apple White. Ela era uma mulher amada por todos que a conheciam, então seu velório parecia uma festa para os amigos: todos vestidos de preto conversando com os outros, separados em grupos, rindo ou falando baixinho, para não ofender a noiva enlutada.
Darling estava sentada em uma cadeira na frente do caixão, com a cabeça entre as mãos que, de vez em quando, tirava do rosto para observar à sua volta.
一 Dex, por que eu a deixei ir?
Encaro minha irmã, sem reação
一 Darling, não foi culpa sua. Você sabe disso. Você fez tudo o que podia, tudo mesmo, mas não tem como prever algo assim, foi de repente, e mesmo assim você deu o seu melhor para salvar quem você ama...
一 Então porque me sinto culpada?
一 Isso é apenas seu cérebro lhe pregando uma peça, você não tinha o que fazer, estava de mãos atadas...
Minha irmã apenas solta um suspiro triste. Não imagino o que deve estar sendo toda a situação para ela. Apple e Darling enfrentaram o baile do colégio juntas, enfrentaram a cidade juntas, enfrentaram a Senhora White e o seu olhar de decepção pra filha e pra sua pretendente, enfrentaram tantas outras coisas que não daria nem para listar.
Poucas coisas na vida me fizeram acreditar no amor, e uma delas foi minha irmã, e a sua insistência em sofrer apenas para ficar do lado da mulher que amava.
Não imaginaria ninguém fazendo isso por mim...

×××

Os incessantes choros vindos de amigos da escola, do trabalho e da vida em geral de Apple White, preenchiam o salão.
Conhecia poucos deles, já que ela era muito popular em cada ambiente em que se encaixava. O funeral parecia um caos se olhado de longe: vários grupos sociais que não tinham nada a ver um com o outro estavam em um mesmo ambiente fechado e pequeno. Daí já deu para ter uma ideia.
"Só pode ser uma piada", pensei
Poucas pessoas no mundo poderiam reunir políticos da alta sociedade e sem-tetos em um mesmo lugar e de alguma forma Apple White conseguira essa proeza, e deveria estar lá do céu (ou de qualquer lugar por aí) feliz por ter feito essa reunião acontecer em seu próprio funeral.
E enquanto passeava pela maré de pessoas vestidas de preto acabei enxergando de canto de olho um vulto.
Um vulto amarelo.
Ele correu em minha direção e se atirou no meu pescoço com um grito estridente
- DEEEEEEEX! QUANTO TEMPO! - Gritou bem indiscretamente
Só pude conseguir raciocinar quem era quando os cachos azuis se afastaram do meu rosto.
- Oi Madeline, quanto tempo mesmo... - digo observando a antiga colega de sala. Em termos de personalidade ela continua exatamente a mesma figura.
- Ah, vamos lá, Dex! Não precisa de formalidades! Pode me chamar de Maddie a vontade, não sou uma seda chique e importada, no final das contas!- ela diz com entusiasmo.
Realmente ela não mudou, apenas na primeira interação começou a falar em enigmas como costumava fazer. É bom que algumas coisas permaneceram as mesmas.
Madeline nunca teve todos os parafusos no lugar, e isso era o que a tornava a pessoa incrível que ela é, com suas manias e suas linguagens em códigos e até ser capaz de vestir um traje todo amarelo em um funeral.
- Diga-me meu querido amigo, onde está Lili?
Rio comigo mesmo lembrando do apelido que Madeline dera a minha irmã. "Parece nome de cachorro" dissera minha irmã no dia que o apelido começou, mas no fundo ela realmente gostava de ser chamada assim de vez em quando.
- Ela está ao lado do caixão, não saiu de lá desde hoje de manhã - eu digo, preocupado, enquanto acompanho a de cabelos azuis até o local
Quando Darling a viu, múltiplos pensamentos passaram pela minha cabeça sobre as situações envolvendo constrangimento por parte de Madeline. Ela era uma boa pessoa, mas no quesito "discrição" ela estava em falta. E como iria reagir ao vestido amarelo? Todos já estavam olhando para ela como se a mesma fosse um bicho estranho!
Mas no fim, de todas as coisas que minha irmã poderia dizer, ela disse:
- Oi, Maddie.
No que ela respondeu, num tom como se estivesse falando com um bartender, prestes a pedir uma bebida:
- E aí Lili!! - com entusiasmo visível na voz
"Talvez ninguém tivesse avisado para ela que isto é um funeral" penso comigo mesmo, mas se tratando dela, é impossível saber.
Provavelmente reparando os olhares dirigidos a ela, Madeline começou a se explicar rapidamente:
- Ah, isto aqui? Ora, isso é uma homenagem à Apple! Não achei que seria prudente vir ao funeral vestindo algo tão triste. Ela com certeza iria querer todos sorrindo e celebrando, mesmo sendo o próprio, bem... vocês sabem.
Snow White, que estava um pouco atrás da gente, ouviu a fala de Madeline e foi até nosso encontro
- Olá querida, essa sua teoria até que faz sentido né? - ela riu sem graça, não sabendo como reagir às estranhezas da de cabelos crespos - Mas por quê amarelo, querida?
Madeline pigarreou, como se estivesse esperando para falar o motivo há dias:
- Dourado é a terceira cor favorita de Apple, e como não tinha nada dourado no meu guarda roupa, escolhi esse vestidinho amarelo! Uma graça, não?- Ela disse dando uma viradinha, para o desespero da Senhora White, que continuava sem reação
- E as outras cores? - Eu perguntei, pois minha natureza curiosa estava afobada no momento com as possibilidades.
Para a surpresa de todos, ela tirou de sua bolsinha um ratinho bem pequeno, vestindo um terno branco
- Meu pequeno Earl se ofereceu para prestar as homenagens de branco, a segunda cor favorita de Apple! Ele não é um cavalheiro? - Ela disse, muito orgulhosa de seu bichinho de estimação
A Senhora White estava mais branca do que normalmente era, parecia que a mesma iria desmaiar ou surtar com a pobre Madeline a qualquer momento. Mas dessa vez, quem perguntou sobre a primeira cor foi ela:
- E-e a primeira, q-querida? - disse gaguejando, com medo do que estava por vir
A garota apenas deu um sorriso, e como se estivesse recitando um poema, disse:
- Raven Queen está vindo de vermelho. Ela só está demorando porque não acha lugar pra estacionar
Silêncio. Choque. E seja lá qual for a outra reação coletiva de todos que estavam perto da nossa conversa.
Madeline apenas sorriu, como se não tivesse jogado uma bomba no meio de um funeral. Até Darling levantou a cabeça que estava enterrada nos joelhos, surpresa.
- Como disse, querida? - a Senhora White perguntou, no que Madeline respondeu, com um tom de voz elevado
- RAVEN QUEEN ESTÁ VINDO DE VERMELHO- e depois botou a mão no rosto de Snow White- Você também está com problema de audição igual a papai?
Darling se levantou da sua cadeira pela primeira vez em horas, e foi em direção aos ombros de Madeline
- Maddie... você está falando sério? Ela... ela está aqui?
- Você não acha que ela perderia isso, não é Lili? Ela queria dar um último adeus a sua antiga amiga, então eu a trouxe para cá.
O rosto de Snow White tinha passado de pálido para completamente-sem-sangue em segundos. Era notável que não pensava na garota fazia séculos e tinha até esquecido de sua existência.
O que eu, particularmente, acho inconcebível.
Raven Queen tinha fugido de casa um dia depois de receber seu diploma de ensino médio. Ela não fez rodeios nem ensaios, apenas pegou suas coisas e sumiu para um lugar que ela -e apenas ela- sabia onde ficava. Ela não deixou uma carta, uma mensagem, nada. Até suas redes sociais ela tinha apagado.
Ela era um fantasma que assombrava minhas memórias desde o dia em que ela se foi. Saber que ela estava viva foi um choque maior do que saber que ela estava de volta a cidade que tanto odiava.
Nunca pensei na possibilidade de vê-la novamente, e ainda assim lá estava eu, ansiando para ter um vislumbre dos olhos violeta de uma antiga paixão boba de colegial.
Quando a figura de Raven surge na porta todos viram a cabeça para admirar o espírito de sua presença. Quase como uma alma penada voltando para nos assombrar.
Ela estava com um vestido vermelho de gola alta e mangas longas, que ia um pouco acima do joelho, usando saltos plataforma pretos e um batom da mesma cor. Nas suas mãos havia um buquê de rosas brancas, amarelas e vermelhas e em seu olhar havia noites mal dormidas e luto.
Ela não olhava para os lados e certamente não estava nem aí com toda a atenção que estava recebendo, ela só caminhava em direção ao caixão de Apple sem desviar seu olhar.
Quando ela olhou o corpo de Apple, ela desmoronou. Nem teve tempo de prestar as condolências à minha irmã (ou à irmã dela, Snow White) antes que lágrimas que estavam sendo seguradas a muito tempo viessem à tona.
Em meio a soluços e choros ela falava algumas frases soltas que ela sussurrava para a amiga
"Você cortou o cabelo"
"Sua idiota, por quê você não me disse? Eu teria te levado comigo!"
"Me perdoe por não ter te dado adeus"
"Eu me odeio"
"Me desculpa. Me desculpa. Me desculpa"
Meu coração se quebrou só de ver ela ajoelhada, olhando nos olhos fechados de Apple dizendo coisas que ela nunca iria ouvir pois ela estava morta.
Darling foi até Raven e se ajoelhou junto dela, sem dizer uma palavra, e as duas ficaram ali, chorando juntas até que a conversa dos convidados começou a ficar alta demais para suportar e elas se levantaram.
Minha irmã foi a primeira a dirigir a palavra a Raven
- Raven... por onde você esteve?
- Por muitos lugares - Ela disse, ainda à beira de lágrimas - Mas eu estou aqui.
- Ela tinha te contado? Sobre... sobre nós duas?
Raven desmoronou novamente e começou a chorar
- Não... idiota!- Ela disse, mais para si mesma que para minha irmã - Por quê você não me contou?? Eu... eu daria um jeito de levar vocês comigo, vocês não precisariam sofrer na mão dessa gente!
Darling sorriu em meio as lágrimas
- Foi difícil, mas conseguimos sobreviver. E estávamos felizes. Iríamos casar. - Ela aponta a aliança na mão gelada e sem vida da loira e depois aponta para seu dedo anelar - Ela queria que você soubesse disso.
Raven deu um sorriso largo que rapidamente desapareceu e foi substituído por mais lágrimas
- E eu só vou poder te parabenizar pelo seu noivado no dia do funeral de sua noiva? Ah meu Deus, Raven Queen, como você é patética.
Darling nada disse, apenas abraçou a amiga. Já a mãe de Apple não se conteve muito.
- Patética e egoísta, isso sim!
- Senhora White! Agora não é a hora. Minha irmã a repreendeu
- Cale-se, Darling! Essa criança do demônio sumiu por anos e aparece para roubar os holofotes no funeral da MINHA filha! Isso é bem a sua cara não é mesmo? Isso é a cara de alguém do seu tipo fazer!
O Senhor White apareceu atrás da esposa e tentou acalmá-la. Inútil, porém não ineficaz.
- Tire suas mãos de mim Henry! - Ela se desvencilhou das mãos dele - Sua mãe deve ter te ensinado a ser invejosa desse jeito. Você não me deixa em paz nem no funeral da minha filha! Você quer tudo pra você mesma! Você é só uma invejosa com a mãe presa! Uma ninguém que quer que a MINHA filha te dê créditos! Sua maldita...
As pessoas começaram a olhar para nós, bem indiscretamente. Enquanto eu tentava distraí-los, Snow White começava a apontar o dedo na cara de Raven, o que fez meu sangue ferver. Eu não a via há anos, mas mesmo assim algo dentro de mim me dizia que ela era a mesma menina de sempre. Aquela que ria das minhas piadas de nerd e ajudava Madeline a pintar o cabelo.
Aquela que...
SLAP
O som de um tapa me acordou das lembranças enquanto todos olhavam espantados para a cena.
Darling Charming havia agredido a própria sogra. Nem a própria White sabia como reagir.
- Como você OUSA??
- Como eu ouso?? COMO EU OUSO??- Minha irmã esbraveja de volta. Naquele momento todo o esforço de distrair a platéia tinha ido para os ares.
Senhor White segurou a esposa pelos braços
- Sua menina... sua.... Sua... você me estapeou pra encobrir essa sua amiga foragida?? Essa demoníaca??
SLAP
Outro tapa. Outros "Ooooh!" coletivos.
- Não se atreva a falar da minha amiga desse jeito! Você não tem esse direito!
Raven Queen assistia a tudo em seu canto, perplexa.
- Darling, não tem problema, eu vou embora...
- Você não vai a lugar nenhum - Minha irmã a pega pela mão - Pelo menos não por causa dessa daí.
- "Dessa daí" então por causa desse demônio eu fui da mãe de sua noiva a uma ninguém qualquer?
Darling franze as sobrancelhas
- Ela não é um demônio. Ela é a tia de sua filha, e merece estar aqui tanto quanto qualquer outro.
- Ah, claro! Que grande tia! Que desaparece por meia década e só volta quando a sobrinha está morta.
Raven começou a derramar lágrimas, e por mais que tudo isso seja verdade, eu não consigo deixar de sentir pena dela.
Henry White a pegou pelos braços
- Nowa, você passou dos limites. Apple não iria gostar de briga no funeral dela.
- Apple não pode repudiar minhas atitudes porque ela está MORTA. - Ela diz e dá um grito de sofrimento
Um silêncio fúnebre preenche o salão.
- O meu bebê morreu... - Ela diz, desabando no chão e chorando tudo o que ela tinha tentado segurar. O marido dela a abraça enquanto chora também. - O meu lindo bebê...
Neste ponto estava todo mundo confuso.
Odeio funerais.

×××

Apple White foi sepultada, enfim. Envelopada em madeira e coberta de terra.
Era um fim muito indigno para alguém que merecia ser enterrada da maneira mais nobre possível e a raiva que eu sentia só reforçava a injustiça.
Ver minha irmã batalhar duro para conseguir um final feliz junto da mulher que amava apenas para, no fim das contas, não ficarem juntas. E tudo isso por causa de uma flecha.
Uma flecha...
Algo dentro de mim acende.
Estávamos todos de luto como se a mulher simplesmente tivesse morrido de velhice.
Ela foi morta. Com uma flecha. E estávamos parados sem fazer nada.
Meu sangue ferve ao mesmo tempo em que minha mente trabalha.
Não é preciso pensar muito na minha decisão. Ela vem naturalmente.

A alma gêmea de minha irmã foi arrancada dela. E eu vou até o inferno para pegar quem fez isso.
Pode apostar.

𝐆𝐨𝐨𝐝𝐧𝐢𝐠𝐡𝐭 𝐒𝐨𝐜𝐢𝐚𝐥𝐢𝐭𝐞 Onde histórias criam vida. Descubra agora