Capítulo 1

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POV: Will - no quarto

  Ótimo, primeiro dia de aula novamente, o primeiro ultimo dia de aula. E eu ainda tenho que escrever a carta pro meu terapeuta. Elas devem começar com "Querido Will Solace, hoje será um dia bom e aqui está o porquê", consequentemente, tenho que falar o que espero de melhor no meu dia. Nem sei porque estou fazendo isso, mas minha mãe e o Dr. Quíron acham que isso está me ajudando, então escrevo pra deixar eles menos preocupados.

  Coloco minha calça jeans marrom e a blusa azul de listras, o que é uma parte difícil quando se está com o braço quebrado. Pego o computador que está na cabeceira, sento na cama e o ligo, abro o Word e escrevo o cabeçalho obrigatório, o resto é a parte mais difícil pois eu REALMENTE tenho que provar que hoje vai ser um dia bom.

 Querido Will Solace, hoje será um dia bom e aqui está o porquê

Porque hoje você só precisa ser você mesmo. Mas também ter autoconfiança. Isso é importante. E interessante também. Fácil de conversar. Acessível. E nada de ficar se escondendo. Mostre-se para os outros. Não de um jeito pervertido, não é para tirar a roupa. Só seja você mesmo — seu verdadeiro eu. Seja você mesmo. Seja verdadeiro consigo mesmo.

  O que é esse meu verdadeiro eu? Isso tá parecendo mais uma frase de um livro de auto-ajuda, mas quem sou eu pra julgar.  Tenho de supor que esse meu "verdadeiro" eu é melhor na vida. É melhor com as pessoas. E é menos tímido também. Por exemplo, eu não teria perdido a chance de me apresentar e parabenizar Nico di Angelo no show de jazz ano passado, não teria ficado o show todo tentando decidir a melhor palavra para elogiar sua performance sem parecer um maluco obcecado. Mas ainda sim parecer super casual como se eu nem soubesse o nome dele, ele se apresentaria e eu falaria algo do tipo "Espera, não escutei direito, Nick, você disse que seu nome é Nick?" e ele falaria "Nico, eu disse Nico". Mas eu não fiz nada disso, eu nem cheguei a fazer contato visual com ele, por que fiquei com medo de minhas mãos ficarem suadas demais (o que não estavam até eu pensar nisso de novo).

  - Então você decidiu simplesmente não comer nada ontem a noite?

    Era minha minha mãe, parada no batente da porta segurando a nota de vinte dólares que eu não gastei. Uma coisa sobre ela: ela adora astrologia. Baixei um aplicativo no celular dela que informa o horóscopo diário. Agora ela me deixa bilhetinhos pela casa com frases como: "Saia da zona de conforto". Ou dá um jeito de incluir a mensagem do dia em nossas conversas: "Encare um desafio novo. Uma interação com um amigo hoje parece promissora". Para mim é tudo besteira, mas acho que, para a minha mãe, os horóscopos dão um pouco de esperança e orientação.

  - Ah, hm, eu... eu não estava com fome.

  - Poxa filho, você tem que começar a aprender a pedir comida quando eu estou fora. Dá até pra pedir pela internet agora, não precisa nem falar com ninguém.

  Isso não é totalmente verdade, ainda tenho que falar com o entregador quando ele chegar e fingir que conferi o troco pois não sei contar sob pressão (o que é totalmente vergonhoso).

  - Desculpa.

  - Não precisa pedir desculpas, só que era exatamente isso que você deveria estar trabalhando com o Dr. Quíron, como interagir com as pessoas e não evitá-las.

  Suspiro, fecho o notebook e calço meus tênis enquanto ela rodeia o quarto tentando achar uma nova resposta para o enigma que eu sou.

  - Por falar nele, marquei uma consulta hoje a tarde depois da escola - diz ela sentando ao meu lado.

  - Mas eu só preciso ir lá semana que vem, porque hoje?

  - Eu sei querido, mas achei que seria bom ir hoje, afinal é seu primeiro dia de aula no ultimo ano do ensino médio. É um evento importante sabe...

  Me olho no espelho meio desanimado, até que pareço bem, os botões da camisa estão alinhados, o cabelo está em ordem, tomei banho ontem à noite. Não tenho tomado muitos banhos ultimamente porque é um saco ter de cobrir o gesso. Eu nem me sujo tanto assim mesmo. Desde que quebrei o braço, basicamente me isolo no quarto o dia todo. Além disso, ninguém da escola vai prestar atenção em como eu estou.

  -Você tem escrito aquelas cartas pra você mesmo? "Querido Will Solace, hoje será um bom dia e aqui está o porquê". Tem feito isso?

  - Eu comecei uma...- digo, aliviado por não precisar mentir. 

  - Que bom. O dr. Quíron vai querer ler.

  - Eu sei. Vou terminar na escola. 

  - Essas cartas são importantes, filho. Ajudam você a ter autoconfiança. Que tal tentarmos pensar positivo, huh? Talvez esse ano podemos não desistir antes de tentar, começar de um novo jeito.

  - Acho que sim.

  Ela vai até a escrivaninha e tira uma caneta permanente de dentro da minha caneca de materiais, já tenho uma ideia do que ela vai propor.

  - Ei, por que não pede para seus amigos assinarem seu gesso? Seria uma ótima maneira de quebrar o gelo, não?

  - Perfeito.

  Que péssima ideia, tem como parecer mais desesperado do que sair por ai mendigando assinaturas? Enfim, levanto, dou um sorriso meio sem graça pegando a caneta e colocando na mochila, já me preparando pra sair dali e pegar o ônibus, afinal nunca uso minha carteira de motorista, nem sei porque tirei.

  - Já estou orgulhosa de você - ela da um beijinho na minha testa

  - Hm, que bom.

  O que eu poderia responder? Ela diz que está orgulhosa de mim, mas seus olhos indicam outra coisa. Minha mãe me encara como se eu fosse uma mancha na banheira que ela não consegue limpar, não importa que produto use. Então, vamos só continuar mentindo um para o outro.

  Eu até gosto dessas consultas com o dr. Quíron, as vezes é bom poder conversar com outro ser humano que não seja minha mãe, ela está sempre muito ocupada com o trabalho e com as aulas e quase não para em casa e, mesmo que ela esteja tentando prestar atenção, mal escuta o que eu falo. Ligo para o meu pai de vez em quando, nas poucas vezes em que tenho novidades que valem apena serem compartilhadas. Mas ele também é muito ocupado.

  Essas cartas deveriam deixar o copo meio cheio, mas, na verdade, me lembram de que eu não sou como todo mundo. Nenhum outro aluno da escola tem lição de casa do terapeuta. Os outros nem devem ter um terapeuta, aliás. Eles não tomam Lorazepam de lanche. Não ficam nervosos e agitados toda vez que as pessoas chegam muito perto, falam ou olham para eles. E, definitivamente, não fazem os olhos de suas mães lacrimejarem só porque estão sentados sem fazer nada.

  Vou me atrasar, é melhor eu ir embora.

Letters from yourselfOnde histórias criam vida. Descubra agora