1.2 Murilo

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- Matteo! – meu tio saudou ao me assistir passar pela porta de ferro pesada, que impedia a claridade de entrar propriamente no lugar. – A que devo a honra do meu filho postiço colocar seus nobres pés no meu estabelecimento? – minha cara estava fechada e eu ainda sentia o peso da derrota sobre os meus ombros, mas me forcei a ir até o velho e lhe dar um abraço caloroso.

Nós não nos víamos há um bom tempo, e ele sempre me criou como um filho. Quando meus pais morreram em um acidente de carro quando eu era moleque, foi ele quem me deu abrigo, e por mais motivos do que apenas ordens de tribunal.

- Papá, eu fiz merda e podia usar um pouco do seu positivismo. – disse, repuxando os lábios. O velho estreitou os olhos, como se analisasse bem as minhas feições.

- Priscila! – chamou alto a esposa. – Vou estar no escritório!

Papá me conduziu para a sua sala nos fundos daquele lugar desprezível e fechou a porta. Assim, no cômodo iluminado e com mobília sóbria, eu quase podia me esquecer de onde estávamos e já me sentia mais confortável.

Puxei a cadeira à minha disposição e joguei meu corpo pesado ali, prevendo uma conversa difícil. Mas antes que eu pudesse dizer algo a meu tio, um som doce ecoou pelas paredes vindo do canto da sala.

Me assustei quando vi um bebê sentado no chão, brincando com um avião de plástico colorido.

Vestido em um macacão jeans simplório e com os cabelos castanhos ralos penteados de lado, o menininho não podia ter mais que três anos. Ele parecia alheio ao que acontecia ao seu redor, ao estranho que tinha acabado de entrar ali, e apenas sibilava baixinho os sons que eu acreditava imitarem os de um avião, enquanto movia o brinquedo de um lado ao outro.

- Quem é esse? – perguntei ao ver Papá se sentar na sua cadeira imponente de couro. Ele ajeitou os óculos de leitura, olhando para mim sem precisar checar o lugar para onde eu apontava.

- Esse é meu filho, Murilo. – respondeu, sereno.

Como é que é?

- Papá, você tem mais de sessenta anos. Não quer me convencer de que mesmo todos os tratamentos do mundo o fizeram viril para engravidar sua esposa nessa altura do campeonato, não é?

- Você não nos visitou há tanto tempo assim, moleque. Teria notado se Priscila estivesse grávida. – disse, fazendo pouco caso. Já tinha percebido que ele ainda não tinha desistido de me chamar de "moleque". Não importava que eu tivesse entradas de calvície e avançado nas duas décadas de vida. – O menino é adotado, mas não é, por isso, menos filho meu.

Ah, sua eterna mania de paternidade. Resolvi que não era da minha conta, a esposa devia tê-lo pressionado e o pequeno era tranquilo e fofo como são os melhores bebês. Não tinha por que me meter ali.

- Vai me dizer por que está aqui? – perguntou.

- Eu disse que tô na merda, Papá. Perdi muita grana...

- Não fez a poupança que te mandei fazer, não é? – perguntou esfregando a testa, já sabendo a resposta. – Você faliu, moleque?

Era aquela palavra de novo. Quem foi o responsável por criar uma palavra tão odiosa? O significado já era duro, mas isso não parecia suficiente para o imbecil que resolveu colocar letra com letra...

- É. – concordei como quem tira um band-aid. - E eu não sei o que fazer. Não é como se o mercado de trabalho estivesse fácil, e ninguém vai querer contratar um Administrador que conseguiu se falir... - engoli em seco. Apenas verdades, eu sabia, mas dizê-las em voz alta fazia parecer mais real. Ele me olhou como se fosse começar mais um de seus discursos intermináveis sobre dar mais uma chance à minha vida pessoal ao invés de me enfiar em trabalho.

[Degustação] BordelOnde histórias criam vida. Descubra agora