Desde que começara a tempestade, não consegui voltar a dormir. De tempos em tempos, meu quarto era iluminado pelos relâmpagos e eu não sabia exatamente onde estava. Pelo céu quase sem estrelas, supus que era minha casa, mas não tinha certeza.
Estava sem cobertor e a janela aberta dava entrada para um ar gélido, arrepiando minhas pernas mesmo em posição fetal e as protegendo com meus braços e meu tronco. Me levantei e a fechei.
Dois adolescentes estavam sentados sobre a calçada, em um canto onde não se pegava chuva. Acho que eles conversavam, mas não pude ver claramente se mexiam a boca por estarem falando ou pelos cigarros que fumavam. Eles pareciam ser mais ou menos da minha idade. Talvez tenham fugido de suas casas sem a permissão dos pais.
A minha mãe dormia, mas sem fazer barulho, soube disso por sua porta fechada e a luz desligada. A cozinha estava igualmente fria à meu quarto antes de fechar a janela, mas não me importei, pegando um biscoito no pote e sentando no chão, apoiada na geladeira.
Olhei meu gato que se esfregou em minhas pernas assim que sentei. Faria 7 anos desde que o adotamos. Não lembro porque fizemos isso, na época, ainda morávamos em casa, o que facilitaria para que ele fugisse, e não precisava de um animal de estimação. Eu apenas ficava em casa a noite para dormir e meu pai também; a loja dele ficava longe, quase uma cidade de casa. Ele tinha planos para se mudar, mas acabou que não aconteceu.
De qualquer forma, ele estar ali era a melhor coisa que podia acontecer. Ele era meu amigo. Ele ainda era meu amigo.
Peguei-o no colo e ele ronronou.
Ao chão, tinha a visão da janela da sala, mas apenas podia ver o céu sem nenhuma nuvem.
Por um segundo, me identifiquei com o mundo. Silencioso, frívolo, vazio. Ele já fora assim antes? Nunca havia percebido. As pinturas e retratos na parede, sem luz, estavam todos pretos. Parecia ser melhor assim, não tinha coisa que mais odiava quando eles. Para mim, não fazia sentido nenhum guardar aquelas memórias, mas ao mesmo tempo, entendia que era apenas elas que tínhamos.
Um barulho de trovão.
Quanto mais me aproximava da janela, podia ver o que tinha em baixo. Os adolescentes já haviam ido embora e me arrependi por não ter acompanhado sua despedida.
O que Ethan pensaria disso? Ele tem cara de que me chamaria a atenção por estar bisbilhotando a vida dos outros; mas ao mesmo tempo também é provável de que me acompanharia. O que ele estaria fazendo agora? Hoje poderíamos ter passado o dia juntos.
Nada acontecia e, por mais que essa seja exatamente a ideia, me incomodava um pouco. Será que os adolescentes de antes não eram apenas coisa da minha cabeça? Acho que isso não importava, mas me questionei.
Como será que as pessoas conseguiam viver mesmo sem um motivo? É uma reta para a morte sem recompensas. O que fazem quando as pequenas alegrias da vida se acabam? Continuam? Acho que me estranhariam se perguntasse.
Às vezes pensava que minha mãe sentia essas mesmas coisas, ela não parece procurar muito nos pequenos detalhes. Mas era fantasia minha pensar que alguém seria esquisita que nem eu. Era difícil ser a única esquisita na vida.
Uma luz fica acesa no apartamento à frente e sinto um pouco de felicidade ao ter algo com que me ocupar. É uma garota. Ela parecia cansada, com seus cabelos bagunçados. Mancava, se apoiando nas paredes como se seu corpo fosse um peso que não conseguisse aguentar.
A luz foi apagada em uma agressão contra o interruptor depois de xingar a lâmpada acesa. Por mais que tenha ficado mais difícil ver, ainda conseguia perceber sua silhueta. Ela se sentou à frente de um piano e o tocou. Fazia tempo que nunca ouvia uma coisa tão bonita.
Há quanto tempo não escutava uma música que realmente gostava e cantei-a aos gritos? Não conseguia me lembrar. Acho que fazia tempo que não ouvia essas músicas que me davam essa vontade. Era um pouco assustador ouvi-las, sabendo da história que fizeram em minha vida e que nunca mais poderei revivê-la. Mas, ao mesmo tempo, era igualmente assustador a falta que sentia e como isto passou despercebido. Era como se, dali para frente fosse só desmoronamento.
A garota tocava com tanta vontade e de um jeito tão gracioso que me forçava a ver mais. Será que ela também pensava nas mesmas coisas que eu? Será que ela também era esquisita? Ela não parecia estar feliz, brava, ou triste. Parecia um pouco inexpressiva, talvez não se importasse mais com as coisas.
— Agatha? — Ouço e vejo que é minha mãe me chamando atrás de mim — perdeu o sono, o que foi? Tá com essa cara de assustada.
Ela estava com o cabelo solto e bagunçado. São raras as vezes que a via assim acordada, geralmente só aparecia quando ia para o trabalho.
— Ah, eu só tô um pouco zonza de sono. Acordei no meio da noite e não consegui voltar. Acho que vou esperar até o fim da tempestade.
— Sei... Tá caindo o mundo lá fora.
Queria perguntar o que ela estaria fazendo acordada no meio da noite, mas não estava com paciência para ouvir suas desculpas.
Olho para atrás dela e consigo perceber algo ali.
Havia alguém. Uma figura alta, escura e ameaçadora. Ela não dizia nada, mas alguns ruídos e sua respiração alta podiam ser ouvidos mesmo estando a mais de cinco metros longe.
Eu não sabia o que sentir e muito menos o que estava sentindo. Não percebia mais o frio de fora, os barulhos da tempestade. Estava paralisada olhando no fundo de seus olhos sem fundo.
Lembrava Ethan. Mas não podia ser ele, era diferente. Ele não se mexia; como eu, estava congelado. Era uma sombra, olhando bem. Não era humano, disso eu tinha certeza.
Ele sorriu com dentes amarelos e pontudos antes de desaparecer em um piscar de olhos.
Ignorar parecia a melhor coisa a se fazer.
Minha mãe havia voltado para o quarto depois de fazer seja lá o que tinha inventado. A garota continuou lá e não parecia que iria parar tão cedo. No escuro, não se incomodou em não poder ver a partitura e muito menos de enxergar o que estava pressionando. Fazia pausas de 30 segundos entre as músicas que variam entre Vivaldi, Tchaikovsky e alguns outros que não conhecia. Mas ela parecia conhecer, e muito bem. Ela tinha uma intimidade com o instrumento que nunca vi com mais nada, ela o conhecia de cor, e as músicas também. Ela parecia apaixonada.
Olho novamente para onde a coisa estava para ter certeza que já havia saído realmente. Nada.
A água já havia parado de cair no asfalto, mas ainda ouvia relâmpagos. Enxerguei meu reflexo no vidro da janela e não gostei nada do que vi. Eu estava com as mesmas olheiras há dias. Me perguntei se minha mãe as percebeu. Se percebesse teria comentado, não? Talvez tenha ficado com vergonha, mas acho que teria ficado preocupada.
O quão frequente se tornou me esconder dos espelhos para fugir da minha imagem já não me doía tanto quanto antes. Tudo o que virava rotina perdia sua mágica. Era natural, mas uma pena.
No meu quarto ainda conseguia sentir o cheiro de chuva, já que a janela ficou aberta por mais tempo. Me enfiei em meio as cobertas sem conseguir fugir do frio, como planejava.
Uma mão passou em minha cabeça.
— Não se sinta assim — Ele falou baixinho — É só uma tempestade, vai passar.
— Eu sei, eu sei. O único problema é quando. Eu só quero dormir.
Ethan fechou as cortinas da janela e sentou no canto da cama.
— Viu? Assim fica bem melhor. Não precisa ter medo.
Ele me abraçou e isso foi o suficiente para me acalmar, mas, de brinde, me fazer sentir um aperto na garganta e meus olhos arderem.
Fiquei mais segura com ele do meu lado. Por quanto tempo ele ficaria? Já foi tirado tudo de mim, a sensação de tê-lo era a única coisa que ainda me fazia sentir algo. Desta vez me permiti não segurar.
E ele secou minhas lágrimas e o homem mostrou seus dentes amarelos para mim quando Mozart começou a tocar.
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O Incrível Vazio da Mente de Agatha
عشوائيAgatha é uma garota solitária que tem histórias como seus únicos companheiros. Uma vez, Agatha, aparece em um lugar desconhecido, que por mais familiar que seja, ainda era diferente de tudo o que já viu, mas subitamente, tempo depois, volta para seu...