5. Jantar e Histórias

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— Olha, não crie expectativas quanto as minhas habilidades culinárias, okay? — Ele largou a chave em uma bandeja sob um móvel ao lado da porta de entrada.

O apartamento era surpreendentemente organizado. Tirando alguns brinquedos espalhados e algumas almofadas pelo chão, não havia indícios de que ele era um pai, jovem e solteiro.

"Ah, e se não se importar, pode tirar o calçado?" Ele deu um sorrisinho amarelo. 

Tirei os tênis e deixei-os ao lado da porta. O único incômodo era ter de revelar que cada pé de meia era de um par diferente. Uma branca com a marcação do calcanhar e dos dedos em azul escuro e a outra listrada de rosa e verde. Esfreguei um pé no outro, tentando disfarçar. Coloquei uma mexa do cabelo para trás da orelha e espiei-o por baixo das sobrancelhas a tempo de vê-lo cobrir o sorriso com a mão. 

— Você pode pegar um desses chinelos, se quiser. — Indicou, apontando para uma sapateira abaixo do móvel onde ficava a bandeja com as chaves. — São higienizados sempre que alguém os usa. São para visitas, sabe. É que, como a Clara brinca no chão, acho mais higiênico não usar os calçados da rua aqui dentro. — Ele revirou os olhos e coçou os cabelos, como se desdenhasse a própria regra.

— Faz sentido. — Me balancei na ponta dos pés um pouco sem jeito e envergonhada.

Talvez a concentração de álcool estivesse baixando, pois senti a Marina Cara-de-Pau que havia o beijado no elevador se dissipar da minha pele. Agora que estava dentro da casa dele, me arrependi fortemente de não ter o enfiado a força dentro meu apartamento. Com certeza após a noite de hoje, não haveria a menor chance de que ele sentisse qualquer atração por mim. 

O apartamento parecia que recém havia passado pelo programa Ordem na Casa com a Marie Kondo. O contraste era gigante se comparássemos o estilo minimalista dele com o meu, denominado por Michael como: Boho de Chernobyl. As paredes eram lisas e pintadas com tons claros. Não havia nenhum souvenir na estante da sala, nenhuma planta viva, morta ou de plástico. O tapete era creme e sem nenhuma estampa. As almofadas no chão eram em um dégradé de marrom e pareciam conversar entre si. Acho que meu cabelo e minha meia esquerda eram as coisas mais coloridas no ambiente. 

— Então, — tentei puxar assunto. — O que fez você se mudar para cá? 

— Certo, vamos recomeçar com a Vodka. —  Com um aceno de cabeça, ele seguiu para a cozinha e eu o acompanhei. 

Para o meu alívio havia louça na pia e um varal com roupas abaixo da janela. Enfim, ele não era um psicopata perfeito, embora suas meias brancas fizessem par. Quem, maldito seja, teve a ideia de separar as meias por par?! Continuei refletindo, sem me perdoar por tamanha desorganização. Prometi a mim mesma realizar essa tarefa assim que chegasse em casa.

"Caramba, há tanto tempo não preciso explicar nada para ninguém que não sei por onde começar." Ele riu pegando a garrafa com o líquido transparente no armário aéreo acima da pia da cozinha e bebeu um gole, me entregando-a. 

Olha, me orgulho do meu fígado de cachaceira, mas Vodka pura é para bêbados de rua ou adolescentes. Embora eu seja um meio termo entre esses dois, estava começando a ficar preocupada em como essa noite iria acabar.

— Vamos começar pelo começo. — Bebi dois goles da vodka e me sentei no balcão que ficava entre a pia e o fogão. — Como você se tornou um pai solteiro? 

Ele riu e tirou a garrafa da minha mão. Fechei os olhos apertando-os. Me arrependi da pergunta, assim que a fiz. A Marina Cara-de-Pau havia aparecido rapidamente sob a simples menção de álcool. Ele colocou sobre o fogão uma panela cheia de água e sentou-se ao meu lado no balcão.

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