— Olha, não crie expectativas quanto as minhas habilidades culinárias, okay? — Ele largou a chave em uma bandeja sob um móvel ao lado da porta de entrada.
O apartamento era surpreendentemente organizado. Tirando alguns brinquedos espalhados e algumas almofadas pelo chão, não havia indícios de que ele era um pai, jovem e solteiro.
"Ah, e se não se importar, pode tirar o calçado?" Ele deu um sorrisinho amarelo.
Tirei os tênis e deixei-os ao lado da porta. O único incômodo era ter de revelar que cada pé de meia era de um par diferente. Uma branca com a marcação do calcanhar e dos dedos em azul escuro e a outra listrada de rosa e verde. Esfreguei um pé no outro, tentando disfarçar. Coloquei uma mexa do cabelo para trás da orelha e espiei-o por baixo das sobrancelhas a tempo de vê-lo cobrir o sorriso com a mão.
— Você pode pegar um desses chinelos, se quiser. — Indicou, apontando para uma sapateira abaixo do móvel onde ficava a bandeja com as chaves. — São higienizados sempre que alguém os usa. São para visitas, sabe. É que, como a Clara brinca no chão, acho mais higiênico não usar os calçados da rua aqui dentro. — Ele revirou os olhos e coçou os cabelos, como se desdenhasse a própria regra.
— Faz sentido. — Me balancei na ponta dos pés um pouco sem jeito e envergonhada.
Talvez a concentração de álcool estivesse baixando, pois senti a Marina Cara-de-Pau que havia o beijado no elevador se dissipar da minha pele. Agora que estava dentro da casa dele, me arrependi fortemente de não ter o enfiado a força dentro meu apartamento. Com certeza após a noite de hoje, não haveria a menor chance de que ele sentisse qualquer atração por mim.
O apartamento parecia que recém havia passado pelo programa Ordem na Casa com a Marie Kondo. O contraste era gigante se comparássemos o estilo minimalista dele com o meu, denominado por Michael como: Boho de Chernobyl. As paredes eram lisas e pintadas com tons claros. Não havia nenhum souvenir na estante da sala, nenhuma planta viva, morta ou de plástico. O tapete era creme e sem nenhuma estampa. As almofadas no chão eram em um dégradé de marrom e pareciam conversar entre si. Acho que meu cabelo e minha meia esquerda eram as coisas mais coloridas no ambiente.
— Então, — tentei puxar assunto. — O que fez você se mudar para cá?
— Certo, vamos recomeçar com a Vodka. — Com um aceno de cabeça, ele seguiu para a cozinha e eu o acompanhei.
Para o meu alívio havia louça na pia e um varal com roupas abaixo da janela. Enfim, ele não era um psicopata perfeito, embora suas meias brancas fizessem par. Quem, maldito seja, teve a ideia de separar as meias por par?! Continuei refletindo, sem me perdoar por tamanha desorganização. Prometi a mim mesma realizar essa tarefa assim que chegasse em casa.
"Caramba, há tanto tempo não preciso explicar nada para ninguém que não sei por onde começar." Ele riu pegando a garrafa com o líquido transparente no armário aéreo acima da pia da cozinha e bebeu um gole, me entregando-a.
Olha, me orgulho do meu fígado de cachaceira, mas Vodka pura é para bêbados de rua ou adolescentes. Embora eu seja um meio termo entre esses dois, estava começando a ficar preocupada em como essa noite iria acabar.
— Vamos começar pelo começo. — Bebi dois goles da vodka e me sentei no balcão que ficava entre a pia e o fogão. — Como você se tornou um pai solteiro?
Ele riu e tirou a garrafa da minha mão. Fechei os olhos apertando-os. Me arrependi da pergunta, assim que a fiz. A Marina Cara-de-Pau havia aparecido rapidamente sob a simples menção de álcool. Ele colocou sobre o fogão uma panela cheia de água e sentou-se ao meu lado no balcão.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Vizinhos
RomanceMarina trabalha como jornalista para uma plataforma de notícias da internet. Seguia normalmente sua vida de jovem adulta, pagando boletos das compras online e comprando ração para o seu gato Gary, até que uma garotinha deveras falante e seu pai supe...