Prólogo

46 9 49
                                    

"Passarinho, venha cá,
não voe não, venha cá.
Suas asas eu cortarei,
pena por pena arrancarei."

   O frio em Hallstatt naquela noite era maior que o normal. As ruas se encontravam quase vazias, com poucos carros estacionados. O pequeno vilarejo da Alta Áustria parecia ser deserto, ninguém ousava sair do conforto de suas casas e encarar o frio constante que os aguardava lá fora.

   As casas antigas e suas janelas de madeira estavam fechadas. Subindo a rua asfaltada, encontrava-se uma pequena igreja, as portas estavam abertas e dentro algo parecia ocorrer.

   Uma enorme cruz de madeira estava pregada em cima da igreja e, na calçada, panfletos promocionais de lojas locais estavam esparramados aos montões. O cheiro de incenso estava forte, até mais que os perfumes baratos de duas senhoras que agora entram na igreja. Ambas carregavam seus terços e com pressa subiram os degraus, chegando ao topo para que, em uma dobrada de joelhos, curvem-se ao símbolo de sua crença. O padre usava sua batina branca, se posicionando no centro do altar, lendo sua tão aclamada Bíblia Sagrada. Após alguns segundos, o senhor já idoso andou de um lado para o outro, carregando consigo um pequeno frasco de vidro transparente, e em seguida com o auxílio de uma cruz — também de vidro —, mexeu o líquido e jogou gentilmente em seus fiéis.

   Os muitos adultos rezavam alto, alguns com a mão estendida, agradecendo a água benta que recebiam, purificando-os. O padre recitava alguns versos bíblicos, e os cristãos permaneciam rezando alto — de mãos dadas — o Pai Nosso.

   — ...não nos deixei cair em tentação, mais livrai-nos do mal...

   — Essa última parte será difícil, padre. — A voz rouca de uma mulher misteriosa surgiu repentinamente, e em seguida os passos pelo piso da igreja ganhavam um volume alto e lento, conforme andava vagarosamente. 

   Se tratava de uma senhora, pouco mais alta que o padre, de longos cabelos grisalhos e vestes que, certamente, não valorizavam em nada o seu corpo. Caminhando pelo corredor da igreja, a estranha senhora veio raspando suas unhas grandes e sujas de terra por cada banco de madeira.

   O olhar da pobre senhora era triste e cansado, estes focados exclusivamente no crente a sua frente. Parando somente quando chegou ao altar, a senhora então levantou mais sua cabeça e mudou a direção de seu olhar para atrás do padre. Assim sua face enojou-se ao se deparar com a grandiosa imagem de Cristo espelhada na parede atrás de Stefã.

   O padre a olhou de cima a baixo, e ao colocar o frasco de volta sob o altar, apertou os cílios, parecendo já saber do que se tratava a ilustre visita. Os cantos da boca da senhora se ergueram risonhos, mas o padre sabia bem que não havia nenhum motivo para sorrir. Não com ela ali.

   — Olá, Stefã! — a senhora o cumprimentou, esticando o braço frágil e seco, porém Stefã recuou. — Quanto tempo!

   Os fiéis ficaram calmos, parecendo prever o que de fato aconteceria, como se de algo soubessem. As duas senhoras de outrora levantaram-se de seus bancos e caminharam para a saída, mas não saíram. Mesmo sob os olhares da visitante fecharam as portas e se afastaram.
Ainda estava cedo para a missa se iniciar, mas Stefã sabia que não aconteceria nenhuma cerimônia ao teu Deus naquela noite. O propósito ali se tornava outro. 

   — Sério? — a senhora questionou, sarcástica, sem esconder o sorriso amarelo. — É assim que trata uma visita? 

   — O que você quer? — fechando sua bíblia, Stefã ajeitou sua postura e a questionou. 

   — Ele pediu para que eu viesse lhe trazer um recado. — A senhora prosseguiu, mais séria. Stefã retribuiu com apenas um olhar enojado. Seus olhos a analisavam com cautela, e a mesma abriu a boca em um sorriso desafiador. — Anastácia.

   Quando a senhora comentou o nome da filha adotiva de Stefã o padre estremeceu. Alguns dos fiéis (agora de pé e espalhados pela igreja) notaram o desconforto. Mas antes que Stefã pudesse dizer algo, a senhora caminhou de volta ao centro da igreja.

   — Ele a achará. — Iniciou, de costas para Stefã. — Assim como achou a sua irmã, padre.

   — Sabe que isso não irá acontecer. — Rebateu Stefã. — Eu jamais permitirei!

   — Oh! Veja só. — A idosa arqueou a sobrancelha e disse calmamente. — Aparentemente pisei em sua ferida. — O deboche, o sarcasmo, a frieza, tudo estava começando a irritar o padre com tamanha força que não aguentou, foi até o mais próximo da senhora, face a face.

   De frente para a misteriosa senhora, Stefã então pode notar melhor o quão fundos eram teus olhos e o que antes pareciam serem rugas, eram na verdade rachaduras espalhadas por todo o teu corpo. Mãos, braços, face, ela estava apodrecendo.

   — Saia do corpo desta mulher de Deus! — ele ordenou. — Volte ao abismo de onde veio!

   A senhora não reagiu em absolutamente nada, permaneceu parada por alguns segundos até quando foi atacada. De cada lado da igreja, foram os fiéis que avançaram contra a possuída, porém a perspicácia do demônio em posse era avassaladora. Num salto foi parar em um banco distante, já deixando evidente a cor assombrosa de seus olhos.

   Os olhos fundos agora cintilavam um escarlate vivo.

Ávido AmorOnde histórias criam vida. Descubra agora