Capítulo 9 - Amanhã Pode Ser Tarde

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Não sei por quanto tempo dormi, mas quando abri os olhos Sarah ainda estava sentada na poltrona, com os braços cruzados sobre o peito, o rosto um pouco inclinado para baixo e os olhos fixos no meu rosto. Seu olhar parecia distante, acima de nós, por entre as lembranças claramente difíceis, uma expressão de sofrimento estampava seu rosto delicado. De repente desviou o olhar.

-Está tudo bem? - perguntei.

-Sim.

Sua voz estremeceu, suas mãos agarraram o braço da poltrona, seus dedos afundaram o couro, seus olhos se arrastavam no chão para longe do meu rosto como um rato fugindo de um gato feroz. Sua pele como seda deu lugar a um tom de rosa claro, uma gota de suor deslizou por sua testa e explodiu na gola de sua blusa preta, seus olhos arregalados percorriam a linha do piso em direção a porta. Ela passou a lingua suavemente por entre os lábios, e mordiscou seu lábio inferior enquanto apertava a sobrancelha.

-O que está te incomodando? - perguntei.

-Nada.

Sua resposta foi tão rápida que a voz não alcançou a primeira letra. Ela está assustada, talvez se sentindo encurralada.

-Não precisa me contar - Sussurrei - não importa o que está te incomodando, não vai mudar o que eu sinto por você.

Ela separou os lábios, lançou um olhar confuso em minha direção, apenas o ar saiu de sua boca, como se duas forças interiores, a razão e a emoção, travassem uma guerra violenta, como leões disputando a liderança da alcateia. De repente minha mãe empurrou a porta, Sarah saltou da poltrona, acenou com a cabeça e desapareceu no corredor.

-Ela está bem?

-Não tenho certeza - respondi.

Minha internação se estentedeu por mais duas semanas, mas Sarah não voltou para me visitar. Sua expressão enquanto me encarava e a forma como ficou na defensiva me pertuturbou, claramente tem mais coisas sobre a Sarah que eu ainda não sei, e pode ser muito pior do que aquele vídeo. Não estou certa se quero saber o que Sarah esconde. Minha mãe tentou me convencer a voltar para casa, por um breve momento decidi retornar, mas algo dentro de mim não conseguia aceitar a ideia de desistir da Sarah.

-Agora que sei que a amo, não quero deixá-la.

-Você não pode salvá-la Mack.

-Eu sei mãe.

-Você quase morreu.

-Eu sei.

-Você tem que voltar para casa, se recuperar e só então decidir o que fazer.

Minha mãe não escondeu seu descontentamento, mas não me impediu de fazer o que desejava. O médico permitiu que eu visitasse a Camila no dia de minha alta. Desci da cama com dificuldade, caminhei pelo corredor lentamente, entrei no elevador e enfiei os fones nos ouvidos, começou a tocar a música "Amanhã pode ser tarde - LP Maromba". A porta do elevador se abriu, caminhei até o último quarto cercado por vidro, avistei a Camila sobre a cama no centro do quarto, com o rosto voltado para cima, totalmente enfaixada, com um tubo saindo de sua boca e fios percorrendo por baixo das faixas. Senti um toque no ombro, minha mão puxou meu corpo e me abraçou. Senti as lágrimas deslizarem por meu rosto como uma cachoeira de dor, solucei como uma criança inconsolável.

-Ela vai sair dessa - minha mãe Sussurrou.

-Eu deveria ter arrastado ela para a delegacia, deveria ter chamado a polícia, sei lá, feito alguma coisa.

-Não foi culpa sua Mack.

-Eu deveria ter feito alguma coisa.

Minha mãe puxou meu corpo e nos afastamos do quarto em direção ao elevador. Apertei o botão, joguei os olhos para o chão, a porta se abriu, entramos e eu virei o corpo para o corredor, de repente vi uma fumaça branca atravessar o vidro do quarto de Camila e a porta do elevador se fechou.

-Acabou - Sussurrei - Ela está livre.

-Quem?

-Camila - Sussurrei.

Assim que a porta do elevador se abriu no térreo, uma mulher passou por nós e se lançou para dentro, virei o corpo e avisei a mulher chorar desesperadamente enquanto a porta se fechava. Apertei os olhos e caminhei para fora do hospital, eu sabia que a Camila não estava mais naquele quarto, e aquela dor que eu sentia desapareceu, senti uma paz tão grande, uma sensação de liberdade. Fui para o hotel que minha mãe estava hospedada, tomei um banho demorado, enfiei a cabeça em baixo do chuveiro e deixei a água escorrer por minha pele e limpar minha alma. Assim que saí do banheiro minha mãe me entregou o celular com uma feição assustada.

-Alô?

-Mack - Zuri Sussurrou claramente bêbada - Camila morreu.

Zuri chorou por quarenta minutos e desligou sem se despedir, talvez tenha apagado. No dia seguinte fomos ao cemitério da cidade, caminhei sobre a grama por entre as lápides, me aproximei de Alice que estava chorando desesperada. Apertei seu corpo em um abraço de consolo, passei os olhos ao redor e avistei Zuri com um olhar perdido amparada por Daniel que balançava o corpo de um lado para outro. Alice se inclinou e lançou uma flor vermelha sobre o caixão de madeira totalmente lacrado. Zuri lançou uma flor negra, Daniel lançou uma flor branca e eu lancei uma flor amarela. O caixão começou a descer lentamente, de repente um relâmpago atravessou o céu diante de nós, um trovão muito alto fez meu corpo estremecer de susto. Uma gota de chuva explodiu na tampa do caixão jogando a flor do Daniel para a lateral, virei o rosto para ele que jogou seu rosto para baixo. A chuva aumentou fazendo as pessoas se afastarem, eu fiquei assistindo o caixão descer, a música ecoava em minha mente. Senti alguém me abraçar, virei o rosto e Taylor apertou meu corpo. A chuva escorria por meus cabelos, deslizavam por meu rosto se misturando com minhas lágrimas e se escondiam em minha blusa. Taylor puxou meu corpo, caminhamos sobre a grama molhada, por entre as gotas da chuva, desviando das lápides em direção ao carro da minha mãe. Abri a porta do carro, saltei para o banco do passageiro, Taylor empurrou a porta e se afastou, minha mãe deu partida no carro e nos afastamos lentamente, virei o rosto para fora, avistei por entre as gotas de chuva da janela o coveiro jogando terra sobre o buraco do túmulo. Saímos do cemitério e nos dirigimos ao hotel, meus olhos passeavam por entre as linhas das gotas escorrendo na janela do carro. Meus pensamentos confusos se chocavam como em uma chuva de meteoro, me sentia culpada por não ter denunciado a tempo, por não ter insistido, mas sabia que o único culpado era o Chance. Eu sentia como se meu coração fosse arrancado do peito e esmagado diante de meus olhos, mas lá no âmago da alma, eu sabia que Camila estava em paz, em um lugar muito mais bonito e nunca mais sofreria novamente. Naquele momento tomei a decisão mais importante da minha vida, nunca mais me silenciaria diante de uma agressão ou abuso, nunca mais ficaria imparcial diante de uma injustiça. Vou lutar pela Sarah da forma que deveria ter lutado pela Camila.

-Não vou voltar para casa agora - Sussurrei.

-Tudo bem filha.

Meu celular vibrou, lancei os olhos para a tela e uma mensagem da Sarah surgiu "Sinto muito", apertei o celular e suspirei ouvindo a voz do Paulo Gustavo declarar entre a melodia da música.

-Então diga o quanto você ama a quem você ama, mas não fica só na declaração não, gente. Ame na prática, na ação. Amar é ação, amar é arte. Muito amor gente. Até logo.

Medusa (Lésbico / Livro Físico) Onde histórias criam vida. Descubra agora