01. Digam 'olá' ao papá

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Olho para todos os lados e a única coisa que vejo é escuridão. Tento procurar algum ponto de luz, contudo sem sucesso. Não sei onde estou. Acordei repentinamente de um sono profundo e a última coisa que me recordo é estar com a minha mãe na sala. Falávamos as duas sobre coisas passadas, sobre como era a nossa vida antigamente. Ela pedia-me desculpas por tudo o que outrora havia feito. Em certa parte achei o seu discurso incoerente, mas ignorei. Nos últimos meses ela não tem sido a mesma mulher. Por muito que ela estivesse ao meu lado, estava ausente. Os seus olhos tornaram-se vazios, com olheiras e as pálpebras roxas. A minha mãe estava cada vez mais cadavérica e eu gostava de acreditar que é só uma fase após a sua separação com o seu último namorado. Porém mesmo antes de ele aparecer na vida da minha mãe, Meredith Martinez nunca fora uma pessoa muito presente. A correria do trabalho dela não lhe permitia que ela o fosse, e sinceramente acho que ela nem o queria ser. Ou simplesmente não nasceu para isso.

Fui educada e acolhida pelos meus avós a maior parte da minha vida, só que tudo foi caindo em decadência após a morte deles. Apareceram-nos dívidas do hospital onde os meus avós estavam internados antes de falecerem, a minha mãe descobriu que o meu pai fazia uma vida dupla com outra família e posteriormente separaram-se. Foi a partir desse momento que fiquei literalmente sozinha. A minha mãe ficava a trabalhar horas a fio para não ter de ficar em casa a mergulhar no sofrimento que a possuía e o meu pai desapareceu por completo. Desde então aprendi a desenrascar-me sozinha para praticamente tudo. Tratava da casa, da comida e de estudar. O meu sonho é ser médica ou enfermeira então está na altura de dar o litro para que eu própria consiga escrever o meu futuro sozinha assim como tudo o que fiz até agora.

Continuo numa luta para tentar entender onde estou. O medo possui-me a cada segundo que passa. Estou dentro de algo estreito pois não tenho mobilidade nenhuma, mas estou de pé. Aturdida e enjoada com a balançar tento controlar a respiração acelerada, bem como o batimento cardíaco. Foco-me nos barulhos que ouço e na vibração que sinto. Eles podiam levar-me a alguma conclusão.

Tremo de segundo a segundo juntamente com a movimentação que sinto no corpo. Parece que estou dentro de um carro que está a andar numa rua de paralelos infinita. Bato com as costas e ombros numa superfície dura. Estico os braços para tentar entender também o que seria. Após percorrer com as palmas das mãos tudo o que estava ao meu alcance fico com a ideia que estou num espaço confinado de madeira, pois acabo por ficar com uma farpa no dedo indicador.
Estou numa caixa. Numa caixa. Porque raios? Estou numa caixa. Dentro de um carro. A passar numa rua com paralelos. Acho eu.
Pequenos raios de luz entram pelas frinchas da suposta caixa de madeira, mas não torna isso suficiente para me acalmar. Pelo contrário. Estou assustada. Muito assustada. Fui raptada?

Sinto o carro parar e uma porta abrir. Parte de mim quer acreditar que estou a ter um pesadelo ultra-realista. Os sons que ouvia à minha volta tornavam-se cada vez mais próximo. Ouço algo idêntico a outras caixas de madeira serem arrastadas pelo alcatrão. Seguidamente ouço gritos. Vozes finas e femininas. Não sou a única aqui.
Cada vez mais perco o meu raciocínio. Paraliso. Onde estou realmente? Com quem estou? Porque estou aqui? Quem teria o interesse de eu estar aqui?

- Rápido! Estou farto de esperar por vocês! - Gritou de longe uma voz grossa, um tanto rouca e com um sotaque característico. Nas ondas da sua voz notou-se a falta de paciência e piedade.

Sinto-me a ser puxada com brutalidade ainda dentro da caixa. As lágrimas tomam conta de mim ainda que involuntariamente. O desespero nunca me fez chorar, mas há sempre uma primeira vez. Todo o meu corpo está gelado. Fecho as mãos em punho cravando as unhas na palma das mesmas. Cerro os olhos ao ficar encandeada com o clarão de luz que invade a caixa. Já não via claridade há algum tempo.

Com aquela luz consegui ver-me. Olhei por mim a baixo. Estou com uma saia colegial azul vestida, umas meias até aos joelhos que tinham umas ligas que prendem às cuecas. O que é isto? Tenho uma camisa branca aberta até aos seios e no pescoço algo semelhante a uma coleira. Tenho medo, muito medo. Desejava poder agarrar-me a algo. Abraçar-me ao meu peluche. Sem ele sinto-me desprotegida. Ele que sempre esteve ao meu lado nos bons e nos maus momentos, desde muito muito pequena. Ele não está aqui agora.

- Cala-te chavala. - Batem com força na caixa, fazendo com que eu gritasse e chorasse mais.

O meu corpo está dorido de eu ter andado aos trambolhões, e cada vez parece que esfria mais. É inverno. Tenho as pontas dos dedos roxas e de cada vez que expiro é notório o vapor de ar quente que sai dos meus pulmões. Agarro-me aos cabelos. Tenho dois totós postos. Mas afinal quem me vestiu assim?

Por muito que puxe e puxe pela cabeça em busca de uma resposta para como vim aqui parar, é como se o meu cérebro tivesse sofrido um reset.

- As encomendas chegaram, senhor Hemmings. - Ouço uma voz grave dizer enquanto pára de movimentar a caixa.

- Já não aguentava mais esperar. - a voz rouca que outrora havia ouvido ao longe, tornou-se próxima. - Desta vez as encomendas têm um sabor diferente.

A voz parecia estar carregada com energias negativas. Tinha nela um tom pesado. Um tom anormal. Um tom que sou incapaz de decifrar e caracterizar.
Sobre um riso e uma nova batida na caixa torno a ouvir a voz que profere num tom um tanto mais assustador do que o que já era: - Digam olá ao papá.

RENDIDA ● LUKE HEMMINGSOnde histórias criam vida. Descubra agora