Sem ter muito o que fazer, Judy voltou ao descampado próximo das cavernas, onde os homens pulavam em comemoração pelo javali. Ela pensou que, se aquelas criaturas quisessem matá-la, já o teriam feito.
Sentiu um pouco de nojo quando todos se reuniram em volta do javali, para arrancar suas presas, tirar a pele e cortar pedaços. Se afastou até uma das tendas, entrando com desconfiança. Era escuro, e não tinha nada no chão além de um amontoado de palhas e alguns panos, que de alguma forma lembravam uma cama. Uma cama pré-histórica, o primeiro registro de uma cama.
O cheiro lá dentro era desagradável, e moscas voavam ao redor das palhas. Antes de sair, uma lembrança engraçada lhe ocorreu: na noite anterior, antes de tudo acontecer, estivera estudando sobre os homens das cavernas e a idade da pedra para o teste de história. Era mesmo muita coincidência ter parado ali.
Já cansada de procurar explicações lógicas, deixou-se levar para o fantástico e experimentou uma forte tontura que a fez sair cambaleando para fora, precisava sentir o calor do sol em seu rosto. E quanto a todas aquelas séries e filmes de viagem no tempo que assistiu? E se, de alguma maneira, ela tivesse sido jogada em algo como um buraco de minhoca, sendo obrigada a passar o resto da sua vida longe dos seus pais, milhares de anos no passado? Isso explicava a fisionomia estranha das pessoas e o cenário.
Um dos homens aproximou-se aos atropelos dela, mas estava tão imersa nos próprios sentimentos que nem se assustou. Ele abaixou-se, depositando duas tigelas de pedra aos seus pés, uma com água e a outra com uma massa amarelada, como mingau. Observou o rosto da sua pequena deusa com imensa expectativa e depois correu para junto de sua família, ansioso.
Judy abaixou-se e analisou o conteúdo, as tigelas pesadas eram realmente feitas de pedra, lisas e perfeitas ao toque. Tomou a água, e pelo cheiro teve certeza que o mingau eram sementes de milho e outras frutinhas esmagadas. Não quis ingerir, e nem tinha ânimo para isso. Mesmo assim, pela primeira vez considerou que os homens tinham mais medo dela e do seu celular, do que ela tinha deles. Se aproximou há uma distância não muito curta, com um imenso sorriso que as criaturas peludas e de cara amassada tentaram imitar.
— Se chama sorriso. — Ela sabia que eles não entendiam, mesmo assim mostrou ainda mais os dentes, no que eles se esforçaram mais para imitar em uma careta distorcida. — Imagine que loucura eu ter inventado os sorrisos aqui e agora.
Eles voltaram com entusiasmo ao javali, e Judy viu algumas ferramentas jogadas de lado, sujas de sangue e bastante gastas por eles. Pegando cada uma com suas mãos, a garota encontrou lanças, tigelas, pedras afiadas, moedores e tudo mais.
Os homens rasgavam a pele do javali com as unhas, pedras pontudas que escorregavam ou lanças enormes. Então ela tentou fabricar uma coisa legal para eles: algo tipo uma lança pequena, uma faca. Admiravelmente ainda não existia nenhuma entre o acervo de objetos que eles colecionavam, não do jeito certo, apenas a lâmina de pedra, sem o cabo. Pegou uma dessas, procurou um cipó bem reforçado e um pedaço de madeira dura, usando suas pequenas mãos agéis, enrolou a pedra afiada na ponta com um nó bem feito. Ficou segura, boa para segurar e cortar.
Claro, ela comparou sua criação com os desenhos presentes em um pequeno artigo sobre a idade da pedra que havia baixado em PDF no celular, e ficou bem parecida. Já tinha certeza que viajara no tempo, e ainda não tinha surtado adequadamente com isso.
Se aproximou dos homens com o novo untesílio na mão, e a estendeu. Um deles recebeu com velocidade, analisou e começou a usar com agilidade e precisão.
— De nada, eu acho...
Foi aí que as lágrimas vieram. Se aquilo era mesmo o passado, então não voltaria para a casa e nem veria sua mãe, na verdade nunca mais conversaria com ninguém! Essas afirmações que já lhe perturbavam tornaram-se de repente mais reais e palpáveis. O que faria?
Ela entrou na caverna novamente, queria esconder-se no amontoado de pedras, dormir no escuro úmido e reconfortante até quem sabe acordar na sua cama, em seu lar.
Um dos homens estava lá dentro, completamente alheio ao javali. A iluminação permitiu que Judy visse o que ele fazia. Desenhava com uma pedra afiada na parede de rocha da caverna. O desenho estava no começo, precisaria arranhar a pedra diversas vezes no mesmo local até que adquirisse a profundidade necessária para que o tempo não o apagasse.
No futuro, algum arqueólogo iria achar, considerar esse, assim como os outros desenhos ao redor, uma obra de arte. Sim, já haviam outros lá, a maioria representando os próprios homens, com suas lanças nas mãos, árvores e outras coisas que eles viam frequentemente em seu cotidiano. Eram os desenhos rupestres, a primeira expressão artística da humanidade.
— Que engraçado, acho que daqui a 10.000 anos tenho uma prova sobre isso.
Ao ouvir a voz de Judy atrás de si, o homem que desenhava largou sua pedra e saiu apressado para fora. Ele ainda trabalharia bastante na arte, principalmente quando ela se tornasse o último registro da passagem de Judy pela época.
— Vou escrever um pedido de socorro nesta caverna para que as pessoas do futuro vejam e encontrem uma forma de me resgatar!
A garota não pensava muito bem, somente medo irracional e surpresa preenchiam sua mente. Ligou a lanterna do celular e chegou perto dos arranhões recém feitos pelo homem que saiu. A maioria dos desenhos já estavam finalizados, pintados com argila, sangue e outras tintas que os homens faziam.
O desenho realizado por último era o de uma garota segurando o celular, ou melhor, uma deusa segurando uma estrela. Com as mãos erguidas para cima, ela acomodava a representação de uma forte luz. Algum trabalho a mais de tintura e aquilo seria eternizado, os teóricos da conspiração fariam um documentário sobre alienígenas para explicar o desenho.
Mas Judy não sabia disso, nem mesmo reconheceu que se tratava de uma homenagem a ela.
Desligou a lanterna, seus dedos trêmulos quase a levaram a enviar inutilmente um novo áudio para a mãe, mas, no final, não suportaria a angústia de ver um relógio ao lado da mensagem, indicando que nunca chegou até sua família.
Judy abriu a câmera frontal, se assustando com a aparência, os cabelos desgrenhados, a terra e a sujeira que marcavam sua pele. Parecia mesmo que estivera numa floresta, lutando com um javali.
Ela apertou os olhos e mordeu os lábios para conter o grito, inconscientemente seu dedo clicou no pequeno círculo vermelho na tela do aparelho, batendo uma foto de si.
Então, a mesma sensação horrenda de suas pernas sendo puxadas para baixo a atingiu. Tudo ficou escuro
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Judy Através do Tempo | Completo
AventuraO que a presença de um smartphone na revolução francesa ou na idade da pedra mudaria no curso da história? Apavorada com a possibilidade de repetir a quinta série pela segunda vez, Judy Henderson deseja profundamente aprender os conteúdos das prova...