Kiara
O mundo a minha volta desaparece lentamente. Os gritos entusiasmados nas arquibancadas. A voz da minha mãe, estridente e autoritária, que sempre se sobressai a tudo mais, até mesmo a da minha técnica, que nunca erguia o tom, nem quando estava brava comigo, sempre mantendo o timbre controlado com o sotaque russo que ela nunca perdeu, mesmo depois de estar há trinta anos no Canadá.
E no vácuo que se segue, escuto apenas o som dos meus patins deslizando pelo gelo, como música para meus ouvidos. Quando era criança, costumava achar que eram notas musicais e até cantarolava enquanto patinava no lago congelado atrás da nossa casa, compondo minhas próprias canções.
Eu ainda acho que o som do aço contra o gelo é como música, mas não há mais a satisfação pueril de apenas deslizar pelo espaço gelado. Patinar agora é minha profissão.
Um conjunto de técnicas, ordem e estratégia.
Um meio para um fim.
E o objetivo é sempre o mesmo: vencer.
Mesmo numa apresentação como a de hoje, apenas um espetáculo recreativo em Vancouver, nunca perco o foco. Pode não estar valendo uma medalha olímpica, mas mesmo assim tenho que ser a melhor.
Ou vou querer perder a posição de patinadora artística mais talentosa do Canadá e uma das melhores do mundo?
E mesmo que eu me esqueça disso de vez em quando, minha mãe está sempre ali para me lembrar, nem que tenha que usar meios não muito amorosos.
Os sacrifícios que fiz.
Os obstáculos que venci.
Tudo o que perdi para conquistar aquela posição.
E são esses pensamentos que sempre passam pela minha cabeça, como um mantra quando fecho os olhos, o público silencia e a música — desta vez, de verdade — começa e abro os olhos, sorrio e estendo a mão para a única pessoa cujo toque ainda é bem-vindo.
Christian Jackson, meu parceiro há quase cinco anos, sorri de volta, com seus olhos azuis e covinhas irresistíveis e cabelos castanhos perfeitamente arrumados.
E o show começa.
Por aqueles três minutos que dançamos e completamos saltos, giros e levantamentos e arremessos, tudo com a graça, a unidade e a química que sempre esperam de nós, o mundo é um lugar perfeito.
Quero viver naquele mundo pra sempre.
Mas a vida real sempre volta, quando a música termina e os aplausos explodem na arena.
Christian me abraça.
—Tudo bem?
Sacudo a cabeça em afirmativa enquanto nos viramos para o público agradecendo, alguém joga um buquê de flores e eu o pego, sorrindo, enquanto deslizamos para fora da pista.
Christian ainda segura minha mão e sinto seus dedos me apertando, descanso os olhos no rosto bonito e noto preocupação em sua expressão.
Christian me conhece mais do que qualquer pessoa e sabe que por baixo do sorriso radiante que todos querem ver da fantástica medalhista de ouro Kiara Willians, estou gritando.
É um grito silencioso que começou baixinho como o rosnado de um filhote com frio e foi aumentando com o passar dos anos, transformando-se em um ressoar agudo e alto o suficiente para ameaçar quebrar o gelo que revestia minhas emoções. Emoções essas que eu mantinha bem escondida no fundo da minha mente.
Ninguém queria ver aquelas emoções.
Eles queriam a perfeição.
O salto perfeito. O sorriso perfeito.
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Corações de gelo
Storie d'amoreImbatível nas competições, a bela patinadora é famosa por suas medalhas olímpicas e por nunca entregar seu coração. O que ninguém sabe, é que por baixo do exterior perfeito, Kiara guarda um terrível segredo do passado que a tornou esquiva com os hom...