Prólogo. - Está perdida, Noceda?

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As águas do mar sempre me causaram grande fascínio. Todavia, foi uma pura desconformidade no fim de tarde daquele dia.

— Senhorita Noceda, estamos cada vez mais perto do navio! Está à estibordo, menos de cinquenta metros! — Um desesperado suplício finalmente despertou Luz, que segurava a bainha de seu cinto com uma força descomunal.

— Avisem a Capitã Edalyn, e recarreguem os canhões. Vai ser uma noite cheia! — Disse a latina em um tom mais alto, sobressaindo a chuva e observando o marinheiro correr em direção à cabine.

Noceda forçava a vista e mordia o interior de sua bochecha. Marujos corriam de um lado para o outro. Alguns ajeitavam suas espadas e armas de fogo desajeitadamente, outros guardavam as comidas e bebidas. Um completo caos que fora interrompido por um único grito de autoridade.

— Basta! — Luz esguichou, no meio do convés. — Estamos sobre ameaça de ataque! Altear as Bandeiras, e preparem-se, hoje é finalmente o dia do castigo do mar aos malditos corsários do governo. Sem pudor, ratos de saguão! Sem pudor!

Seu palmo esquerdo movia sua simples e velha espada de Estoque ao ar frio, acompanhada dos súditos piratas que gritavam em agitação, encharcados pela chuva forte.
O mastro de gurupés na frente do barco aproximava-se cada vez mais da embarcação do governo britânico, tão grande quanto esse que haviam saqueado. E nesse intervalo, com uma garrafa de rum puro na mão, Capitã Edalyn saia de sua cabine com um canalha sorriso ao arrumar o chapéu decorado.

Seus fios brancos não disfarçavam a idade chegando, entretanto continuava com a alma jovem de um navegante novato.

— Onde estão os garotos do Hurdy Gurdy? Nada como uma batalha trivial e épica com uma bela música de fundo, hein, Luz? — Disse bem humorada quando se aproximou da Contramestre.

— Sei que está animada com isso, mas não podemos dar mole pra esses ratos, Capitã. — Ambas trotavam no meio da movimentação, observando os piratas recarregarem os canhões e afiarem suas adagas. — Willow tomará conta dos feridos, e Augustus já trabalhou em uma rota de fuga.

— Luz, você acabou de fazer dezenove anos e está tentando pegar meu posto? — Edalyn deu um soquinho no braço da mais nova, prosseguindo — Onde está King, afinal? Esse cão do mar… — E ao terminar, uma voz firme e rouca fora sobreposta nos murmúrios dos marinheiros. Era King, o Homem das Armas.

— VERMES MALDITOS! Vão caminhar na minha prancha e virar comida de tubarão!

Com um último grito de ordem, o barulho da âncora despencando no mar fora o gatilho para que o fim de uma trégua finalmente começasse.

Enquanto isso, no outro navio, soldados com uniformes e fardas brancas de veludo fino debruado, pingentes e coldres que guardavam balas de pistolas e mosquetes. Muitos da côrte real não costumavam usar lâminas, por considerarem um item rebelde e deselegante demais.

Os corsários, assim como os outros marujos do barco vizinho, preparavam-se para um combate avassalador. O cheiro de pólvora daquele navio era indescritível.

Entre as diversas caminhadas, salientava-se o barulho das botas de salto baixo. Elegantemente andando no convés principal com olhos duros e frios. As mãos pálidas da silhueta voraz jogaram os fios grudados na testa pela chuva um pouco para trás.

— Vinte metros, Capitã. Está tudo em ordem. — Disse baixo ao chegar perto da figura superior, que estava apoiada estrategicamente na cerca que cobria todo o esplendor do navio. Madeira pura, brilhando em verniz.

— Perfeito. Mar calmo nunca fez bom marinheiro, e hoje provaremos isso para aqueles idiotas pilheiros. — Ajeitando o chapéu de tecido branco, a mulher de cabelos negros afastou-se da contramestre e observou atentamente seus marinheiros tomarem a posição. Os navios iriam se encontrar lado a lado, em uma posição de desvantagem perfeita para uma invasão.

A outra de cabelos castanhos, com a blusa branca encharcada pela chuva teimosa e um corset preto na cintura, observava com frieza  a aproximação. De repente, pegou-se fitando atentamente a lateral direita do navio dos piratas inimigos. Lá estavam eles, com suas espadas punhaladas, quietos e aflitos como nunca estiveram antes. Um clima tenso que esquentava a garganta da garota, como goles de puro whiskey, sem gelo.

Seus olhos claros se encontraram nos da maruja rival. Também com um corset, porém com trapilhos mais simples e rasgados. Seus fios curtos e pele morena ruborizados pela concentração e raiva, seu cenho franzido lhe frisando diretamente e o peito estufado. Convencida.

Ela sorriu, sádica. Descansando a mão na cintura.

— Vamos acabar com isso logo. — A capitã dos corsários bufou ao dizer, andando sobre a proa do barco e saltando até o deck adversário.

Os mareantes da tropa de Edalyn melindraram suas espadas caso manifestasse um movimento brusco. Contudo, a líder aproximou-se cada vez mais da de fios brancos, que não parecia tremer ou hesitar.

— Edalyn Clawthorn, quanto tempo, não é…? A idade realmente atingiu você em cheio. — Falou ríspida.

— Poupe-me. É bom te ver mais uma vez...Lilith. — A última sílaba escapou em desdém. — Olha, se está aqui para mais um acordo, nós realmente não estamos interessados. Não vê o quão felizes estávamos antes de chegar? Os tambores de hidromel ao menos se esvaziaram-...

— O Império Britânico cansou dos seus joguinhos trapaceiros, Eda. Ou renda-se, ou lute. — Lilith interrompeu, e com uma risada prosseguiu. — Com essas frágeis lâminas, mesmo com cinco meses em alto mar. Está cada vez mais enfraquecida e velha, irmã.

E em um último impulso de angústia, a capitã rebelde lançou a garrafa alcoólica no mastro de madeira velha e sacou a espada de sua bainha em direção ao tronco da morena, que desviou e apontou a pistola decorada como reação. Assim, despertando o transe dos soldados de ambos os lados, que deram início ao tumulto com gritos de guerra e invasões aos barcos.

Luz praguejou enquanto trilhava seus olhos escuros no meio da multidão que se resumia em lutas de espadas e tiros de precisão.
Enquanto as irmãs Clawthorn travavam uma batalha no andar principal, Noceda acelerou o passo enquanto empurrava alguns dos lutadores dementes na sua frente, contornando a lateral do navio dentre a densa multidão.

A chuva atrapalhava sua visão, enquanto segurava-se nas cordas ásperas e balançava-se sobre todo o convés principal, hora ou outra erguendo a lâmina e rasgando a pele de marinheiros de farda branca. Malditos britânicos!
Luz manejava as cordas e pendurava-se entre as velas com certa maestria, correndo em busca de uma entrada para o navio corsário.

Finalmente, ao pular para a prancha de estibordo, elogiou-se mentalmente enquanto observava a grande maioria dos piratas massacrarem-se com unhas e dentes. Os lábios curvados pelo prazer de estar tão perto das relíquias do governo.
Em uma tentativa de virar-se para apoderar-se da embarcação, sentiu o pontiagudo de uma rapieira encostar bruscamente em sua garganta.

Numa reação súbita, a pirata também ergueu a espada, que tocava o queixo definido da silhueta em frente.

— Está perdida, Noceda? — A voz aveludada de sua rival invadiu seus ouvidos. Ela erguia o punhal com firmeza, pressionando quase sadística na pele bronzeada da latina. A pele pálida brilhando sobre o luar e as luzes dos lampiões, úmida pela garoa. — Espero que não tenha se esquecido de mim.

Uma única gota descia por sua têmpora, até o maxilar, onde sorria de canto.

Droga, que mulher cafajeste...

— Como eu poderia lhe esquecer, Amity Blight?

Seria, de fato, uma longa noite.

O Inferno do Atlântico. - LUMITY.Onde histórias criam vida. Descubra agora