O louco

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O louco

A melhor ajuda para a mente é romper com os grilhões que iludem o coração.
–Ovídio.

Aura acordou habitualmente ao horário que bem entendeu, quando já não aguentava mais virar na cama e se forçar a dormir, estava exausta, cansada de tanto dormir e de tanto viver, parecia que aqueles dias arrastados não tinham fim, por mais que dormisse ou jogasse video game eles não passavam, se arrastavam como domingos, como se longas correntes tivessem que ser arrastadas por ela,  onde quer que fosse. Soprou a vela à beira de sua cama, e as outras por seu quarto, esticou as costas e abriu a janela para encarar o pôr do sol, tão belo quanto poderia ser, não que qualquer tipo de beleza natural pudesse encantá-la, mas haviam outras coisas que tocavam seus sentimentos.

Faltava indecisão na personalidade dela naquele fim de tarde, então acabou se arrumando mais rápido do que planejava, estava pronta para sair muito antes do que esperava. Iria a casa de Ramon, seu melhor amigo, para que de lá fossem à festa na casa de um conhecido. "Conhecido" isso era praticamente uma piada, nunca tinham visto a cara do dono da casa, só conheciam seu irmão mais novo que parecia ficar na casa de qualquer pessoa para não ficar na sua, era como se nunca quisesse voltar para o terreno onde a enorme casa se encontrava, a não ser é claro, para dar festas.

– Por favor, não se esqueça das velas, você sabe o que acontece. –Diz a mulher com certa ternura no olhar, entregando a sacola de papel com velas à Aura, a mesma sacola que recebia toda vez que ia dormir fora da casa desde que se conhecia por gente.
– Você sabe que tem velas na casa do Ramon, mãe. –Tranquiliza-a se esforçando ao máximo para não ser rude, andava engolindo a seco algumas coisas, mas esboçava um sorriso frágil no rosto tentando não criar um conflito. Tentou devolver a sacola de papel pardo, mas sua mãe sequer fez menção de pegá-la. Na casa de Ramon tinham pilhas e pilhas dessas sacolas, essa iria para a lata de lixo assim que passasse pela porta.
–Não se esqueça dos seus remédios também! –O olhar lançado pela garota a cala, o clássico olhar de desprezo adolescente que pode calar qualquer pai, mesmo que Aura já não seja mais adolescente.

Da as costas sem dizer mais nada, mas o fervilhar na boca de seu estômago a fazia enjoar,  aquele ódio que parecia consumi-la em silêncio nunca teria fim enquanto não falasse o que estava guardado em seu âmago, mas como não podia mais se envolver em conflitos, não podia fazer muito mais do que permitir-se engasgar. O carro e seu condutor a aguardavam na porta, impacientemente, piscou para ele sorrindo com seu charme, e antes de entrar no carro arremessou a sacola de velas o mais forte que pode na lata do lixo sabendo que sua mãe estaria assistindo da janela.

–Eu francamente achei que você estava morta. –Resmunga insatisfeito com o atraso. Ela responde sem pensar.
–Eu certamente preferia estar.
–Você não dá notícia a dias, nem seu irmão te viu, e eu achei se viesse aqui e você não estivesse te colocaria numa furada. –Resmunga irritado.
–E isso é da sua conta agora, Ramon? Onde eu estou ou deixo de estar? –Corta com sua língua de navalha.
–Vai pro inferno Aurora. –Xinga tentando ignorar a personalidade da garota.
–É certamente onde eu preferia estar. –Repete seca.

Ele se esforçava demais, chegava a ser humilhante, não aceitava de maneira alguma o modo como Aura levava a vida, era inconcebível para ele, aliás, aceitar ele até aceitava, mas se sentia impotente perante a situação e tentava ao máximo não deixar Aura se afundar em suas tendências de isolamentos, ele precisava dela. Estava quieto, praticamente mudo, mas Aura não reparou, pois estava extremamente contemplativa, olhando pela janela sem ver nada destilando ódio mentalmente. Subiram as escadas de sua casa em direção ao quarto de Ramon no segundo andar.

Coração LascivoOnde histórias criam vida. Descubra agora