II - Amelia

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Amelia acendeu outro cigarro com seu isqueiro dourado, queimando o polegar, e tragou lentamente. A televisão estava ligada a sua frente, em um canal qualquer - ela não se importava. Seu batom vermelho manchava a borda do copo de uísque que tinha na mão. Ela não conseguia lembrar o quanto já havia bebido - perdera a conta depois do oitavo copo. Olhou para o chão, tentando enumerar as garrafas vazias atiradas no tapete, mas sua visão embaçada tornou isso impossível.

Suspirou cansada, entornando a bebida novamente. O líquido desceu queimando, borbulhando em sua garganta. A sensação era boa. Reconfortante, na verdade. Todo aquele álcool a impedia de pensar, e por isso Amelia estivera tentando manter-se o menos sóbria possível nos últimos meses.

A foto de uma garotinha sorrindo ocupava a mesa ao lado do sofá. Tinha uma expressão alegre e os olhos azuis como o céu. Seus cabelos pretos por pouco não alcançavam a cintura. Tinha alguns traços semelhantes aos de Amelia, como a boca e o formato do rosto. Entretanto, por algum motivo, a mulher evitava olhá-la.

Do lado de fora, na rua deserta do mais nobre bairro da cidade, houve um clarão que cegaria qualquer um que não estivesse seguro em sua casa. Os vizinhos provavelmente pensariam que fora um raio. Amelia, no entanto, ficou estática, os olhos verdes fixos na porta. Um calafrio percorreu seu corpo inteiro, e o temor afastou boa parte dos efeitos causados pelo uísque.

"Amelia!"

Alguém estava batendo na porta com uma força desumana. Ela fechou os olhos e passou os dedos lentamente pelo sofá branco, sentindo os pequenos buracos causados pelas inúmeras vezes em que havia adormecido com o cigarro aceso, queimando o estofado.

"Amelia!", ela ouviu novamente a voz de um homem, alta como um trovão, do outro lado da porta. O enorme lustre de cristal no teto balançava, ameaçando cair sobre a mesa de centro. A mulher apertou o copo em sua mão, tremendo, ao mesmo tempo em que a porta da frente desabava inteira no chão.

Na entrada da casa, onde até momentos atrás estava a porta, havia um homem. Emanava um poder tão grande toda a casa de Amelia estava vibrando. Sua expressão furiosa era tão amedrontadora que a própria mulher teria fugido se conseguisse manter suas pernas estáveis.

"Onde ela está?"

Amelia não respondeu. Sua boca formigava e ela não tinha certeza se conseguiria articular as palavras de maneira decente.

"Amelia", o homem chamou pela terceira vez, desta vez com a voz mais controlada, porém com a mesma fúria visível nos olhos azuis como o céu. "Onde está a minha filha?"

A mulher limpou a garganta e abriu a boca lentamente. Sua língua estava pesada e ela pronunciou cada palavra de forma lenta, porém compreensível. "Ela se foi."

O homem estreitou os olhos. A televisão começou a emitir um chiado ensurdecedor. Parecia a ponto de explodir. "Onde ela está?", ele perguntou novamente com os dentes cerrados, em um tom de voz que não parecia um grito, mas era alto o suficiente para que as janelas tremessem novamente.

"Eu não sei", murmurou de volta.

Os olhos Amelia repentinamente ficaram embaçados, e desta vez não era efeito do álcool. Ela sentiu algo molhado escorrer por sua bochecha.

Nesta hora, a voz do homem era um sussurro. "Eu vou encontrá-la", ele prometeu. Amelia mal conseguia escutá-lo devido ao som da televisão e de seu próprio soluço. "E vou garantir que você nunca mais a veja."

E dito isso, uma claridade absurda tomou a sala. Ela consegui tapar os olhos antes que fosse tarde, e, quando os abriu, segundos depois, era a única naquela casa. As únicas provas de que tivera visita eram a porta derrubada e a televisão, ainda emitindo o chiado de estática, agora mais baixo.

A mulher estendeu a mão para a mesa ao lado ao sofá, tentando alcançar o controle remoto. Seus dedos tocaram algo plano e duro.

A garotinha a encarava com um sorriso nos lábios, os olhos idênticos aos do homem que recém havia visto. Amelia pegou a foto da filha e colocou-a no colo, as lágrimas descendo por seu rosto e molhando sua blusa enquanto todas as lembranças que tentava apagar voltaram à sua cabeça.

Família, LukeOnde histórias criam vida. Descubra agora