Victoria viu uma morte pela primeira vez com 3 anos de idade. Tratava-se de um irmão seu, alguns anos mais velho. A fome incessante foi apenas um catalisador de sua morte. O que levou-lhe a vida foi a gripe espanhola. Essa era uma memória que ela se lembrava bem vagamente, tal qual um sonho que há muito tempo fora sonhado. Nem mesmo o nome do seu irmão ela se lembrava. Tinha mais 6.
As ruas sujas, úmidas e escuras de Londres eram sua casa. Morava em um beco, ao lado de uma confeitaria. A garotinha se maravilhava com os bolos tão bem decorados, os pães doces cobertos de fondant, as bombas de chocolate. Nunca havia a menina sentido o gosto do açúcar.
No longínquo ano de 1927, Victoria ouvia os comentários dos pomposos adultos mais afortunados que ela comentando que a Arábia Saudita havia se tornado oficialmente independente do Reino Unido. Não sabia o que era, se era um lugar, uma pessoa. Também não sabia o que palavra "independente" significava. Aliás, a menina mal falava, só conhecia as palavras que ouvia de sua mãe e das pessoas que passavam na rua.
Victoria acordou de repente com um de seus irmãos a sacudindo.
⁃ Vamos, a mãe vai nos levar até a praça.
E assim fizeram. As pessoas os encaravam na rua com olhares feios.
Na praça, ainda mais. A mãe pôs os filhos lado a lado, olhando cada um com um olhar vazio. Então ela se virou e começou a berrar.
⁃ Venham, venham! Estou vendendo essas crianças!
Alguns ficaram horrorizados. Lentamente, surgiu uma aglomeração. Um homem se aproximou.
⁃ Este daí tem quantos anos? - o homem apontou para o seu irmão mais velho.
⁃ Fez 10 há mais ou menos um mês, senhor - a mãe disse. - Está na idade certa para começar a trabalhar. Aguenta carregar cargas pesadas e tem esperteza.
⁃ Ótimo, dou 20 por ele.
A transação foi completa. O homem levou seu irmão, que não teve nem forças para gritar.
O dia se seguiu dessa mesma maneira, metade de seus irmãos tinham sido vendidos.
A menina prendeu sua atenção num lindo par de sapatos cor de rosa que passavam por ali. Eram lindos. E logo estavam na sua frente.
⁃ Por Deus, o que é isso?! - A mulher perguntou, indignada. - Por acaso está vendendo essas crianças?!
⁃ Cada um faz o que faz para sobreviver, minha senhora - a mãe respondeu.
⁃ É um pecado! Um absurdo!
Subiu o olhar. Era a mulher mais linda que tinha visto em toda a sua curta vida. Tinha os cabelos dourados presos debaixo de um chapéu bege, os lábios cor de ruge e usava um sobretudo extremamente sofisticado.
De alguma maneira, o olhar da mulher se encontrou com a menina. Os olhos dela eram azuis tal qual o céu. A expressão da mulher mudou, e seus olhos encheram-se de lágrimas.
⁃ Odiosa mulher - ela disse. - É notável que não tem condição de cuidar dessas crianças. Deixe-me levá-las comigo. Lhes darei uma boa vida. Comerão e beberão do melhor. Receberão educação. Deixe-me levá-los.
⁃ Não vai levar as crianças sem pagar-me.
⁃ Mulher, não vê?! Está vendendo seus próprios filhos!
A mãe permaneceu calada. A nobre mulher, derrotada, pegou sua carteira e pegou muitas notas de dinheiro.
A próxima coisa da qual se lembrava é de caminhar com a mulher e seus três irmãos para a direção contrária de sua mãe. Entrou, então, pela primeira vez, num automóvel. Ao sentar-se, a mulher resolveu falar.
⁃ Quais são os seus nomes? - Ela perguntou docemente aos meninos.
⁃ Eu sou John, este é Edwin é aquele é Michael.
Virou-se para a menina com um sorriso no rosto.
⁃ E quanto a você, pequenina? Qual o seu nome?
⁃ Victoria.
⁃ Ora, pequena, você tem nome de uma rainha. E também tem a beleza de uma.
Após um certo tempo no automóvel, adentraram numa grande propriedade, com um imenso jardim que aos olhos da menina parecia infinito, repleto de árvores, flores e borboletas. A mansão que avistou reluzia com a luz do sol.
Ao descer do veículo, Victoria não sabia para onde olhar. Um mundo repleto de novas cores abriu-se diante de seus olhos. Novos cheiros e novos sons. Era como se tivesse morrido e chegado ao paraíso.
⁃ Minhas crianças, essa é sua nova casa, Willowtree Hall.
As portas enormes da mansão se abriram, e quatro novas mulheres se aproximaram, todas vestidas iguais. Com elas também vieram dois meninos. Logo, ambos se esconderam atrás das saias das mulheres.
⁃ Eu sou Marian. Eu cuidarei de vocês agora.
Ela se virou para as mulheres.
⁃ Essas são Caroline, Mathilda e Jane. Elas também cuidarão de vocês.
Ela puxou os dois meninos para perto de si.
⁃ E esses são Peter - apontou para o mais alto. - E Theodore.
Victoria olhou para os dois meninos e notou como estavam bem mais saudáveis, limpos e corados que ela.
⁃ Essa é a sua nova família.
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Visões Etéreas
Romance"E assim prosseguimos, botes contra a corrente, impelidos incessantemente para o passado." - F. Scott Fitzgerald, O Grande Gatsby. Victoria viveu na miséria dos becos de Londres até ser adotada por uma poderosa e rica família, que não lhe doou apena...