Capítulo 37 - A dama de companhia

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Estou consciente.
Foi o que Victoria pensou assim que se viu em outro cenário, diferente do de sua vida miserável em 1945. Não, pela ambientação gélida e o vestuário das mulheres, que vestiam vestidos longos e estruturados, com chapéus e tocados tampando seus cabelos, ela soube imediatamente onde estava. Nas malditas memórias de Margery. Entretanto, aquilo era diferente de como tinha sido com Annie. Daquela vez, ela se sentia dentro do corpo de Margery. Sentia o vento frio em suas bochechas, a seda contra sua pele. Sentia-se respirar.
Por que estou consciente?
Olhou para os lados, podendo observar que estava parada ao lado de outras mulheres, que cercavam uma outra mulher. De costas, ela não parecia importante. Era só mais uma dentre as outras que vestiam seus vestidos elaborados. Porém, Victoria sabia quem era aquela mulher, embora estivesse nervosa somente de estar na sua presença. Quando ela se virou, quase ficou sem ar, podendo ver sua pele oliva, olhos escuros e lábios carnudos.
Ana Bolena.
- Não irei comparecer a corte hoje. - A rainha disse, altiva. - Sinto-me indisposta. São os maus momentos de minha gravidez.
A rainha acariciou sua protuberante barriga, sorrindo.
- Quero que vá em meu lugar, Lady Margery.
Embora estivesse consciente, sua boca ainda falou por conta própria.
- Certamente, vossa majestade - Margery respondeu.
- Venham, caminhem comigo.
Todas as damas de companhia acompanharam a rainha enquanto ela passeava pela área aberta do Palácio de Hampton Court. Conforme ela andava, as pessoas, seus súbitos, faziam reverências a ela.
- Tudo é muito complicado para uma mulher, mesmo que uma mulher ao lado de um homem tão poderoso quanto vossa majestade. Até mesmo um homem como ele precisa de garantias para o futuro. É isso que essa criança representa... Oficialmente. Infelizmente, para meu infortúnio, as pessoas desta corte não me querem bem, logo, esse bebê também é a minha salvação. Ir tão longe tem um grande preço. Há olhos e ouvidos em cada parede deste castelo.
Ana suspirou.
- Por isso que vocês, minhas queridas damas, devem ser meus olhos quando eu não puder ver, meus ouvidos quando eu não puder escutar, e até mesmo minhas mãos quando eu não puder me mover. Fui clara?
Todas as damas assentiram.
- Está bem. Podem seguir seus rumos. Exceto você, lady Margery, quero ter em particular com você.
Margery permaneceu, conforme Ana havia solicitado. A rainha pegou em suas mãos.
- Lady Margery, dentre todas elas, você é a mais querida. Ter sido nascida e criada em Norfolk, minha terra natal, faz com que eu me veja em seus olhos com facilidade e grande saudosismo. Eu lhe conheço desde quando você era um bebê, rezei para que sobrevivesse a terrível doença do suor, e nosso bom Deus ouviu minhas preces. Você é como um espelho, mas tão mais doce e sensível, tal qual uma bela flor. - Ana sorriu. - Te quero muito bem, e por isso exijo tanto. Preciso que me ajude.
- Farei qualquer coisa que pedir, vossa majestade. - Margery se curvou. - Se não fosse pela sua incrível bondade, eu não estaria viva para contar minha história.
- Pois bem, preciso que se atente ao que vou dizer. Hoje a corte receberá emissários escoceses escolhidos a dedo pelo próprio rei Jaime. Devido a minha indisposição, não poderei estar presente na confraternização e recepção dos visitantes, mas você, meu espelho, poderá. Quero que os observe cautelosamente e minuciosamente, e depois me traga os detalhes de tudo.
Margery assentiu com a cabeça.
- Como quiser, vossa majestade.
Ana apertou as mãos da mais nova.
- Obrigada, minha querida. Estarei no aguardo de suas considerações.

Margery vestia um dos vestidos que herdou de sua irmã mais velha, Joan. Ele era branco e não aparentando estar surrado por causa do tempo. Em seu pescoço, usava um simples cordão de pérolas. Não eram de boa qualidade, nem de perto, pois a família Smythe, apesar de ter conseguido elevar seu status social, ainda carecia de dinheiro para esse tipo de futilidade. Em seu cabelo, o tocado francês, que usava ao estilo de sua senhora, a rainha Ana.
Era de se esperar que Margery já fosse uma mulher casada, afinal, já estava no auge de seus dezessete anos, e a maioria das mulheres nessa idade já estava com pelo menos um filho, mas ela havia sido escolhida para ser mandada à corte. Inicialmente, os planos eram enviar Joan para o convívio cortês, porém, a irmã havia falecido tragicamente há menos de um ano, vítima da terrível doença do suor. Joan era tudo que Margery não era: passiva, angelical e, acima de tudo, obediente. Obviamente, para todos que viam a sua cautelosa casca, a dama era de fato uma preciosa gema da corte inglesa, polida e perfeita para ser uma esposa, mas tudo não passava de uma grande mentira. Ela nunca fora assim. Desde criança teve problemas para ajustar seu comportamento a sociedade, enfrentando inúmeros castigos e punições por expressar inescrupulosamente suas opiniões e vontades, além de ser um poço de teimosia. Nas palavras de seu falecido pai, Maggie era como um cavalo selvagem.
Não poderia ser assim em Hampton Court, tratava-se de uma questão de sobrevivência. Mulheres indomáveis não tinham sequer a compaixão dos homens pelos cavalos, eram simplesmente descartadas como bruxas malignas e histéricas. Ela sabia bem disso, afinal, não era uma completa imbecil como sua pobre irmã Joan, que se foi cedo demais. A irmã tinha sido casada pelo breve período de dois anos, sendo incapaz de prover herdeiros ao seu marido, o que gerou fortes tensões entre as famílias. Margery era um cavalo, Joan uma ovelha. Lhe doía pensar nisso, mas era preciso seguir em frente. Os mortos seguem mortos - os vivos ainda podem morrer.
Acariciou o tecido do velho vestido branco, pensando em Joan. Suspirou e, mais uma vez, seguiu em frente.
A corte estava animada novamente. Todos festejavam a gravidez da rainha Ana, a qual era de desejo geral que gerasse um herdeiro para a Casa Tudor. Músicos tocavam canções animadas, damas e cavalheiros dançavam livremente ao som das notas musicais. Aquele não era o trabalho de Margery. Não era o trabalho da dama de companhia da rainha se deleitar em canções de trovadores, ao menos não se tal dama desejava ser a favorita. Por isso, ela pairava sobre o chão do salão principal, exercendo toda a sua graciosidade adquirida, com os olhos e ouvidos a postos. Sua obrigação era ser a favorita.
A música parou, e todos se curvaram para que sua majestade, o rei Henrique, pudesse caminhar em direção ao seu lugar de sempre, atrás de uma mesa enorme de comes e bebes. O rei era um homem alto e em constante processo de ganho de peso, e o chão sempre tremia quando ele passava. A dama de companhia tinha duas hipóteses para esse fenômeno incomum: ele poderia ser tão pesado que o chão estremecia com sua nada discreta massa corporal ou, os cortesãos tremiam fortemente em seus próprios corpos ao testemunhar figura tão imponente. De qualquer forma, a dama sentia por Henrique a mesma coisa que sentia pela maioria dos homens: desprezo. Embora sua ascensão social fosse inteiramente dependente do sucesso conjugal da rainha Ana, Margery desprezava o rei pela maneira conforme havia se livrado tão indiferentemente de sua rainha anterior, Catarina. E, certamente, havia as amantes, que não eram poucas, o que a enojava, mas a mesma sabia que era um pecado comum no mundo dos homens ser infiel.
Pela bondade divina, ela nunca havia caído nas graças de Henrique. Não desejava obter problemas com sua senhora, e muito menos com o rei da Inglaterra. Talvez, na cabeça de Henrique, ela fosse imperceptível, e isso era bom. Quanto mais longe de sua majestade, melhor.
O rei sentou-se em sua cadeira e, erguendo um cálice de vinho, permitiu que as danças continuassem. Era um dia comum na corte inglesa. Estava prestes a se retirar quando escutou a anunciação dos tais emissários escoceses, e se forçou a permanecer no recinto.
Quatro homens entraram pela porta, vestidos exatamente como cidadãos ingleses, se não fosse, talvez, pelos xales quadriculados que trajavam.
- Ora, se não são os nossos enviados da Escócia. - O rei ergueu novamente seu cálice de vinho. - Fizeram uma boa viagem até meu palácio, senhores?
Um dos homens, de cabelos escuros, tratou de responder.
- Sim, vossa majestade, o tempo está encantador na cidade de Londres. - Ele se curvou. - Se me permite a petulância, esperávamos menos sol.
O rei abriu um sorriso.
- Em comparação com as frias terras escocesas, realmente, o clima londrino é encantador - ele respondeu. - Qual de vocês é o líder da expedição?
O homem, ou melhor, rapaz mais ao fundo, de cabelos extremamente ruivos, se aproximou do rei.
- Thomas Coventry, vossa majestade. Sou eu quem lidero esses homens.
Teddy, Victoria apontou mentalmente. Aquele é o Teddy.
- Como são as vossas terras, Earl Thomas?
Coventry sorriu.
- São muito belas, vossa majestade. No verão são muito férteis e se enchem de farturas, o suficiente para mim, minha família e os vilarejos ao redor. Não tenho do que reclamar.
O sorriso do rei se desfez, e Margery podia ver as peças de sua mente se reorganizando. Qual seria seu próximo passo?
- Muito bem, earl Thomas, depois teremos em particular para tratar dos assuntos formais do rei Jaime. Por enquanto, os convido a aproveitar as maravilhas da corte inglesa ao máximo.
Os emissários se curvaram e se espalharam pelo salão. A dama sabia que deveria segui-los, escutar sobre o que conversavam e com quem, e assim o faria, pois era a sua incumbência.

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⏰ Última atualização: Dec 28, 2023 ⏰

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