Capítulo 2 - Lembranças

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24 de dezembro de 1930

A decoração da sala de estar para as festividades natalinas estava estonteante. Havia um lindo pinheiro, gigantesco e verde, no meio da sala, e muitos pingentes e enfeites em suas folhas. No topo do mesmo, uma belíssima estrela dourada. Em sua base, caixas e mais caixas de presentes. Do lado de fora da casa, a neve caía com força no jardim, cobrindo as flores e as árvores com sua brancura. Victoria usava roupas de frio, meias, luvas e pantufas. Estava aquecida. A grande lareira também favorecia o calor agradável. Seria seu terceiro natal com os Morrigan. Antes de viver com eles, a menina nunca tinha comemorado o natal. Não havia como fazer qualquer tipo de comemoração na situação que vivia. O máximo que poderia fazer era observar as decorações natalinas do beco onde morava. Agora, o natal era uma realidade, era a sua realidade.
Não seria um natal completamente feliz. Há pouco mais de um mês seu irmão Michael havia falecido devido à pneumonia gerada pela gripe espanhola. Seu segundo irmão morto. Não sabia como se sentir. Não sabia o que era o luto, não sabia como reagir. Viver em situações extremas criou uma criança sem emoções. A menina gerava preocupação aos Morrigan. Quase nunca sorria, ou chorava, ou fazia qualquer coisa. E ela já estava em Willowtree Hall há 3 anos.
Seu irmão John, ao contrário dela, se adaptou muito bem a nova vida. Adorava ser mimado, enchido de presentes, comidas doces e brincadeiras extensas que não tinham hora para terminar. Era um pouco ridículo o seu comportamento infantil visando o fato de que já tinha uns 12 anos de idade.
Edwin não era expressivo como John, mas não tão quieto quanto a irmã. Ele gostava de estudar, tudo e qualquer coisa. Depois de aprender a ler, o menino lia e lia. Matemática, física, ciências... O céu era o limite para ele.
Marian tentava de tudo para obter reações da menina. Sendo a única criança menina da casa, e a única que Marian tinha convivência, ela a via como especial. Tratava Victoria tal qual uma princesa, mas a menina era tão quieta que a assustava.
Só havia uma pessoa que conseguia ver o que havia por baixo da frieza da garota.
⁃ O que você acha que vai ganhar do Papai Noel esse ano? - Tímido, porém solícito, Ted perguntou.
Victoria pensou antes de responder.
⁃ Ele não pode me dar o que eu quero.
⁃ Claro que pode. Ele é o Papai Noel. Ele pode tudo.
⁃ Será que ele pode me dar asas? - Ela questionou. - Eu quero ser uma fada.
O menino ficou em silêncio por um tempo.
⁃ Acho que pode. Os elfos são mágicos, acho que podem fazer asas de fada para você. Qual cor você as quer?
⁃ Azul. Com brilhinhos por toda parte. - Victoria imaginou. - E quando ele me fizer fada, vou ficar tão pequena quanto uma boneca. E aí eu vou morar dentro de uma árvore.
⁃ Eu posso ir com você? - Ted perguntou com os olhos brilhando. - Eu também quero morar dentro de uma árvore.
⁃ E você vai ser fada também?
⁃ Posso ser um fada-homem. Se o Papai Noel te fizer fada ele pode me fazer fada-homem.
Naquele dia os dois fizeram um pacto selado com cuspe nas mãos. Se tornariam fada e fada-homem, morariam juntos numa árvore e viveriam felizes para sempre ali. Depois surgiu a questão do que seria feito caso o Papai Noel não pudesse transformar ambos.
⁃ Eu acho que ele pode sim - Victoria comentou. - Você mesmo disse que ele pode fazer qualquer coisa.
⁃ Mas vai precisar de muita mágica.
⁃ Os elfos emprestam a mágica para o Papai Noel.
⁃ Mas e se eu não puder ir com você?
Victoria pensou, e depois encheu os pulmões de ar.
⁃ Então eu não vou. Eu não vou sem você.
⁃ E eu não vou sem você.



1939

O baile na casa dos Kingsley seria naquele sábado, daquela semana. Era só disso que se falava em Willowtree Hall. Marian passava seus dias inteiros pensando na logística do baile.
John retornara e se trancou no quarto para se recuperar de dias de bebedeira. Edwin passava o tempo inteiro estudando e quase não saía do próprio quarto. Sobrava para Victoria, Peter e Ted o dever de arranjar algo para fazer.
Jogaram damas, xadrez, cartas, mímica, jogaram dados e tudo mais que existia.
Peter estava todo suado, fazendo com que seus óculos ficassem constantemente escorrendo de seu nariz. Ele se levantou e abriu a janela da sala em que estavam, deixando um bafo quente entrar.
⁃ Feche isso! - Victoria pediu. - Tem um dragão cuspindo fogo do lado de fora!
⁃ Eu não aguento mais isso - Peter desabafou. - Esse calor corroendo minha alma. Não sinto nem uma brisa. Cheguei ao inferno sem saber!
⁃ Se pudesse - Ted começou. - Me teleportaria para aquela praia que fomos. Ouvir as ondas no mar, areia no pé. Queria que fosse possível.
⁃ Há um lago aqui perto - Victoria comentou.
⁃ Vamos até lá - Peter disse com determinação. - Falo sério.
⁃ Como assim, simplesmente iríamos até lá? Como?
⁃ Podemos pegar o automóvel e dirigir até lá.
⁃ Oh, não - Ted se manifestou. - Não arriscaria a minha vida com você no volante.
⁃ Ora, então vamos andando.
⁃ Caminhar até lá? São tipo uns 3 quilômetros até o lago...
⁃ Suas pernas estão mesmo flácidas - Victoria brincou. - Vamos antes que escureça.

Algum tempo depois de começarem a caminhar, Victoria já se sentia a ponto de derreter.
⁃ Ora, que ideia infeliz a minha - resmungou.
⁃ Estamos quase chegando - Peter afirmou mais para si do que para ela. - Tenho certeza absoluta.
Caminharam mais por um tempo e a beira da exaustão completa, avistaram o brilho do lago.
⁃ Eu o vejo! - Ted gritou. - Está ali!
Eles correram até a margem do lago, começando a tirar as roupas de cima. Victoria retirou seu vestido com cuidado, revelando seu maiô azul. Era a última moda, disse Marian quando lhe deu.
Sem pestanejar, a garota pegou um impulso e pulou dentro do lago, sentindo sua água gelada aliviar o calor que sentia. Foi seguida pelos dois rapazes, que também pularam na água. Rapidamente começaram a jogar água um no outro, como sempre brincavam quando iam à praia.
⁃ Eu aposto que consigo chegar ao outro lado mais rápido que os dois - Peter desafiou.
⁃ Eu não jogo seus jogos, Peter - Victoria disse com um sorriso sarcástico em seu rosto. - Por que vocês dois não competem entre si?
⁃ Não é um problema para mim - o mais velho disse casualmente. - Porque tenho convicção de que sou mais rápido que ele.
Ted revirou os olhos e jogou água no rosto do irmão, arrancando uma risada de Victoria.
⁃ O que me assusta, e falo sério - Peter começou. - É a sua covardia de fugir de um desafio.
⁃ Como é?
⁃ Antigamente você não negava nenhum desafio - ele zombou. - Hoje está negando todos. Está com medo de perder?
⁃ Não tenho medo de nada - ela disse com confiança. - Muito menos de você. Eu não aceito seus desafios pois sou uma adulta, não me cabe mais bobagens de criança.
Peter riu.
⁃ Está dizendo que eu sou uma criança?
⁃ As vezes age como se fosse.
⁃ Qual o ponto dessa conversa? - Ted questionou. - Porque eu não vejo nenhum.
⁃ O que você acha, Teddy - Peter perguntou ao irmão. - Eu sou ou não uma criança? Tendo em mente que sou dois anos mais velho que vocês.
⁃ Não sei dizer. E sinto que não importa. Ainda somos os mesmos. A única diferença é que estamos alguns anos mais velhos.
⁃ Fácil falar para quem se chama "Teddy".
Sem paciência, o rapaz mergulhou e nadou para o outro lado sozinho.
⁃ Ele continua sendo... - Peter começou. - Ele. Sempre fugindo das discussões.
⁃ Melhor que sair discutindo por motivo nenhum.
⁃ É fácil dizer isso quando ele sempre fica do seu lado.
⁃ Não sei do que está falando.
⁃ Mas você não é adulta? Deveria saber de tudo.
⁃ Eu sou adulta.
Peter riu e saiu nadando.
Victoria se sentiu inflando de raiva. Não gostava de ser desafiada daquela maneira. Então ela decidiu sair da água do lago e sentar na grama. Olhando de longe, não via nenhuma diferença entre os dois irmãos. Pareciam ter a mesma idade. Desaprovava o fato de Peter, no auge de seus 19 anos, continuar agindo como se tivesse 15. Ele era um ótimo amigo, mas sempre pegava pesado nas brincadeiras. Na cabeça de Victoria, ela era mais adulta que ele. Já tinha lido o triplo dos livros que ele leu, sabia tocar piano e violino, sabia ballet, sabia costurar, desenhar. O que ele sabia? Nada. Nem andar a cavalo.
Com uma ideia diabólica na mente, Victoria se levantou.
⁃ Peter! - Chamou. - Se você é tão adulto quanto acha que é, me responda uma pergunta.
⁃ Pois bem, faça-a.
⁃ Você já beijou uma garota?
Ele a olhou com surpresa. Victoria se sentia uma campeã por deixar o rapaz boquiaberto.
⁃ Por que quer saber?
⁃ Ora, só quero saber. Um homem adulto certamente já beijou uma mulher.
⁃ Já beijei mais de 10.
⁃ Me parece inventado.
⁃ Quais eram os nomes delas? - Ted entrou na brincadeira.
⁃ Você não iria conhecer elas. Elas não são de Londres.
⁃ Ele está mentindo.
⁃ Não estou! Eu te provar isso.
⁃ Como pretende fazer isso?
⁃ Deixe eu te beijar pra te provar.
Victoria sentiu seu coração parar por um segundo. Peter não poderia estar falando sério.
⁃ Pare de brincar - ela disse.
⁃ Está com medo?
⁃ Eu já disse que não tenho medo de nada.
⁃ Então qual o problema?
Ela ponderou antes de responder.
⁃ Não te acho bonito o suficiente para te beijar.
Peter gargalhou.
⁃ Certo. Então beije ele. - Apontou para Ted.
O mesmo saiu da água imediatamente.
⁃ Chega dessa discussão inútil! Que chatice! - Ted ergueu a voz. - Esse papo de quem beija quem, namoradas que não são de Londres, adultos... Isso é ridículo! Que diferença faz se ela não quer aceitar um desafio e se ele beijou ou não uma garota? Isso sim, para mim, é criancice.
Um silêncio mortal se instalou entre os três depois da discussão.
⁃ Tem razão - Victoria admitiu. - Estou agindo como uma criança.
⁃ Eu também - Peter confessou. - Me desculpe.
Os três sentaram na grama, observando o céu ensolarado.
⁃ Mas só por via das dúvidas, sem brincadeiras ou zombarias - Victoria começou. - Você já beijou uma garota?
⁃ O que você acha?
⁃ Acho que provavelmente sim - ela respondeu. - Você já tem 19 anos.
⁃ Só uma vez - ele disse. - Quando eu tinha 14 anos. Foi péssimo e eu escovei meus dentes copiosamente após o ato.
⁃ Eu não sabia disso - disse Ted. - Por que nunca nos contou?
⁃ Porque achei que vocês iriam zombar de mim.
⁃ Jamais faria isso.
Victoria pegou a mão dos dois irmãos.
⁃ Nós não somos feitos da mesma coisa. Eu sou feita de Ar, Ted de Terra e você de Fogo. Mas nós somos complementares. Um círculo que não tem fim.
Ted riu.
⁃ Um mundo onde nós três não existimos seria um mundo que eu não gostaria de viver.
O silêncio desconfortável foi substituído por um silêncio acolhedor. Victoria pensou no que Peter disse sobre seu único beijo.
⁃ Você pode me beijar se quiser - ela disse ao mais velho.
⁃ O que? Por que? - Ted comentou.
⁃ Só estou falando que se ele quiser, pode me beijar.
⁃ Você quer beijar ele? - O loiro questionou quase como se tomasse a causa para si mesmo.
⁃ Está com ciúmes? - Victoria zombou. - Eu te beijo também se você quiser.
⁃ Isso é estranho - Ted comentou. - Tecnicamente não devíamos fazer isso. Somos praticamente irmãos e irmã.
⁃ É só um beijo! Não é como se fossemos nos casar ou algo do tipo.
⁃ Não - Ted disse. - Eu não quero te beijar.
⁃ Por que? - Por algum motivo, Victoria se sentiu ofendida. - Não sou bonita o suficiente para você? Você é especial?
⁃ Eu só não quero - respondeu. - Se quer tanto beijar alguém, beije ele.
Victoria sentiu um bolo na garganta. Sentia-se com raiva e com uma frustração que não sabia explicar.
⁃ Não vou beijar ninguém - ela disse. - Vou para casa.
Ela se levantou e pegou seu vestido, colocou o mesmo e saiu andando logo depois.

Ao chegarem em casa, cada um foi para um canto e Victoria subiu para seu quarto, fazendo questão de trancar a porta daquela vez. Uma tristeza súbita subiu em seu peito, e ela se viu com os olhos cheios de lágrimas. Não sabia dizer o porquê. Sem conseguir segurá-las, elas a deixou sair com tanta força que começou a soluçar. Algo não fazia sentido dentro de si. Isso não deveria importar tanto.
Decidida a tomar um banho, ela o fez. Estava penteando os cabelos molhados quando ouviu alguém bater na porta.
Não se moveu, então bateram novamente.
⁃ Victoria, eu sei que você está aí dentro, abra a porta por favor.
Não vou abrir, Victoria pensou.
Estou profundamente ofendida.
⁃ Victoria...
⁃ Não vou abrir - respondeu. - Se quiser me ver, vai ter que entrar no quarto de outra forma.
⁃ Vic, por favor.
⁃ Minha decisão está tomada.
Após dizer que estava se sentindo indisposta, a menina desligou as luzes e deitou para dormir. Antes que pudesse fechar os olhos, ouviu batidas na janela.
Não é possível, ela pensou.
Estou profundamente ofendida.
As batidas continuaram.
Ela se levantou e foi até a janela, onde Ted estava na sacada, segurando algo em suas mãos.
⁃ Eu trouxe doces.
⁃ Estou profundamente ofendida, Theodore.
⁃ Me perdoe.
⁃ O seu comportamento foi extremamente descortês. E além do mais, uma dama não deve abrir a sua janela para que um cavalheiro entre em seu quarto.
⁃ Mas você não é uma dama e eu não sou um cavalheiro.
Frustrada, pegou um sobretudo, vestiu-se e abriu a janela, deixando que ele entrasse.
⁃ Me perdoe - ele repetiu. - Mas é que você ficou insistindo naquilo.
⁃ Eu queria que ele tivesse a oportunidade de beijar uma garota de novo - disse, ainda mantendo a guarda. - Não estava desesperadamente querendo beijá-lo, foi apenas uma tentativa de ser gentil.
⁃ As pessoas não saem por aí oferencendo beijos. Ao menos acho que não.
⁃ Se você não sabe não pode falar nada sobre o assunto.
Ted deitou no chão, comendo uns caramelos.
⁃ Você está deitado no meu chão.
⁃ Estamos legislando sobre chãos agora? - Ele riu. - Que criancice.
⁃ Eu sou uma mulher - Victoria repetiu. - Não posso mais me dar ao luxo de ficar brincando por aí.
⁃ Então eu sou um homem - ele disse.
⁃ Obviamente.
⁃ Você é mulher e eu sou homem. O que quer dizer tudo isso? Nada. Me chamo Theodore, você se chama Victoria. Meu cabelo é loiro, o seu é castanho. E aí?
⁃ Você está me irritando.
⁃ Não é a intenção.
Ficaram calados.
⁃ Lembra daquele natal em que você queria que o Papei Noel lhe desse asas?
⁃ Lembro-me.
⁃ Isso é criancice. Mas não significa que seja ruim.
⁃ Oh, claro. Eu e você morando dentro de uma árvore. Bem real.
⁃ Qual o problema? - Ele perguntou. - Eu ainda quero morar com você numa árvore.
Victoria sentiu seu coração subir a garganta.
⁃ Mas e o Peter?
⁃ Ele pode ser nosso vizinho.
Victoria observou o rapaz deitado no chão, iluminado pela luz da lua. Ele percebeu que ela o encarava e começou a rir.
⁃ O que foi? Por que está me olhando?
⁃ Você é bonito.
Ela se arrependeu das palavras assim que as disse. Ted também não falou nada.
⁃ Você também é. Você é a garota mais bonita que eu já vi.
⁃ Como pode dizer isso num mundo que temos Katharine Hepburn?
⁃ Ela não se compara a você.
⁃ Pare de brincar, Ted.
Ele se sentou.
⁃ Não estou brincando.
Ela quase não podia ver seu rosto, mas sabia que ele era bonito. Sempre soube disso, mas ali, naquele momento, ele era o garoto mais bonito que ela havia visto. E não sabia o que fazer com essa informação.
⁃ Eu gosto quando você sorri - disse sem saber o que dizer. - Você deveria sorrir mais.
Ironicamente, ele sorriu.
O coração de Victoria batia freneticamente, e ela sentia suas bochechas ardendo, seu corpo pegando fogo.
Em todos os seus 17 anos de vida nunca tinha se sentido assim.
⁃ Quer ir contar estrelas? - Ele perguntou.
Victoria assentiu, sem palavras.

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