Victoria achava que uma vez tinha conhecido o tédio, mas agora, estando em Lifesbridge, ela percebeu que nunca havia realmente experimentado o mesmo.
Não havia nada para fazer na cidade, e o frio congelante não ajudava nem um pouco com a adaptação. Além disso, as suas memórias e sonhos teimavam em persistir na sua mente. Desde que sonhara com as várias versões de si mesma, Victoria tinha medo de ir dormir, portanto o evitava a todo custo. Os sinais de sua privação do sono eram aparentes: olheiras começaram a se manifestar em seu rosto, estava constantemente cansada e com dores. Sempre que a confrontavam sobre a situação respondia a mesma coisa:
⁃ Estou bem.
Havia melhorado na arte da mentira, mas mesmo assim o seu corpo falava por ela. A verdade era que a menina estava aterrorizada demais para sequer arriscar passar pela mesma situação novamente. Toda vez que fechava seus olhos o confronto com sua versão infantil retornava, e com ela também o medo.
O fato de estar completamente alienada do mundo também a incomodava profundamente. Não tinha notícias de nada, e se sentia perdendo a noção do tempo.
Marian recebia umas ligações duas vezes por semana, as quais Victoria suspeitava que fossem atualizações da situação em Londres, mas nunca se incomodou em perguntar pois sabia que não obteria respostas.
O que restava para ela eram livros já lidos, partidas intermináveis de xadrez e a especulação sobre o futuro.
A situação com Ted também parecia estagnada. Na maioria das vezes em que estavam sozinhos, sequer encostavam um no outro. Essa situação chateava Victoria, mas também a deixava desconfortável. Em todos os aspectos da sua vida ela se sentia falhando.
Victoria não conheceu o amor até ser adotada pelos Morrigan, e mesmo assim só aprendeu o amor fraternal. Tudo que sabia sobre romance vinha dos livros e filmes. O problema era que a vida real não era nem um pouco parecida com a ficção.
Victoria desejava que fosse.
Em um dos incontáveis dias iguais em Lifesbridge, Marian sugeriu aos filhos que fossem conhecer a cidade.
⁃ Mãe - Peter começou. - Não sei se a senhora percebeu, mas não há nada por aqui. É só gelo.
⁃ Ora, não é possível que seja verdade isso que você diz. Sim, a cidade é de fato pequena, mas tenho certeza que existem jovens por aqui.
Os quatro fizeram silêncio.
⁃ O que está sugerindo, mamãe? - Ted perguntou.
⁃ Por que não vão fazer alguns amigos?
Victoria sentiu seus olhos pesarem, mistura de sono e relutância. Amigos – ela não tinha nenhum. Pelo que conhecia de seus irmãos, nenhum deles também tinha. A exceção era Edwin.
⁃ Não precisamos de amigos - Victoria respondeu.
⁃ Querida, preste atenção no que está dizendo. Todos precisam de amigos.
⁃ Hipoteticamente - Peter começou. - Se concordássemos com essa sugestão, onde encontraríamos nossos possíveis "amigos"?
⁃ Olhem, na minha época - Marian começou. - Não creio que esta frase saiu da minha boca...
A mulher suspirou.
⁃ O que eu estava dizendo é que na minha época os jovens se encontravam em lugares públicos. Algo assim.
⁃ Não está ajudando.
⁃ Podem ir ao mercado ver se encontram alguém por lá.
Os quatro se entreolharam, confusos.
⁃ O que isso tem a ver, mamãe?
⁃ Todos vão ao mercado, não é mesmo? Podem encontrar alguns amigos por lá. E estamos precisando mesmo de leite.
⁃ Não há a menor possibilidade de que eu me force a passar por essa situação - Peter reclamou.
⁃ Eu odeio essa cidade - Peter começou. - E eu estou aqui há menos de duas semanas.
Após muita insistência da parte de Marian, os quatro jovens Morrigan foram até o mercado da cidade – que era minúsculo, por sinal – sob a desculpa de "comprar leite".
⁃ Provavelmente ela acha que nós somos estranhos - Edwin comentou. - Para achar isso uma boa ideia, é a maior probabilidade.
⁃ Nós somos estranhos - Victoria rebateu. - E não temos amigos. Exceto por você, Eddie.
⁃ Está preso conosco - Ted zombou.
⁃ Aposto que está sentido saudades de Persephone - Peter sugeriu.
Edwin o encarou com uma expressão de confusão.
⁃ Sinto falta de todos os meus amigos igualmente.
⁃ Ora, ele não admite.
⁃ Não há nada para admitir.
⁃ Sinto como se estivesse preso numa conversa que não sei do que se trata - Victoria apontou. - Do que estão falando?
⁃ Edwin está apaixonado por Persephone.
Edwin riu.
⁃ Ora, você está iludido, Pete. Eu sei que você a quer todo para si.
Peter ficou vermelho quando todos os olharem se viraram para ele.
⁃ Não sei do que está falando.
⁃ Oh, então por que está corado? - Edwin zombou. - Pete é o homem apaixonado aqui.
⁃ Acabei de descobrir que também te odeio - o mais novo rebateu. - Você e essa sua prepotência.
Victoria bufou, começando a andar.
⁃ Não ficarei aqui para ouvir os dois discutindo como dois velhos. Se quiserem duelar até a morte para eleger o mais idiota, fiquem a vontade. Eu vou comprar a droga do leite.
O mercadinho por dentro era ainda mais deprimente do que do lado de fora. Tinha cheiro de comida velha e de mofo, mas o pior de tudo era a madeira claramente encharcada. Victoria tomou coragem e seguiu até o balcão, se deparando com um homem que fumava um cigarro de palha.
⁃ Boa tarde.
⁃ Tarde - o homem respondeu. - Vai querer o que?
⁃ Dois litros de leite, por favor.
O homem se virou para uma portinhola que havia atrás dele e gritou:
⁃ Leite! Traz dois!
Victoria pegou o leite e pagou, tudo com bastante pressa para não se demorar por ali.
Saindo do estabelecimento, ela se deparou com um trio de meninos fumando do lado de fora. Ela os ignorou e voltou em direção à família.
⁃ Ei - um dos rapazes gritou. - Vocês não são daqui não, né?
⁃ Não - foi o que Peter respondeu.
⁃ De onde vocês são?
Todos se entreolharam, mas Peter resolveu responder.
⁃ Somos de Londres.
O garoto do outro lado cutucou seus amigos, que se aproximaram.
⁃ Vocês vieram de bem longe. Vieram pra cá pra fugir da porradaria?
⁃ Basicamente.
O menino riu.
⁃ Então vieram pro lugar certo. Duvido que os alemães saibam que Lifesbridge existe.
Ele estendeu a mão para Peter, que liderava a conversa.
⁃ Jack Wallace. Esses são Harry e Jim.
⁃ Peter, Edwin, Ted e Victoria.
Victoria estava ficando enjoada por conta do cheiro do cigarro, e congelando mais a cada segundo que se passava.
⁃ Então - Peter começou. - O que vocês fazem para se divertir por aqui?
⁃ Olha, a gente costuma jogar pôquer. A gente também fuma e as vezes saímos para o salão.
⁃ Salão de festa?
⁃ É, como se fosse um bar só que muito grande. Uma vez ou outra uns músicos resolvem tocar e a gente dança até cair.
Jack Wallace tragou seu cigarro.
⁃ E aí, querem sair?
Victoria, emburrada, com sono e com os dois litros de leite, se encontrava agora embaixo de uma ponte ouvindo as conversas dos rapazes.
Jack e seus amigos eram pessoas legais, e de fato amenizavam o tédio da cidadezinha, mas Victoria não estava mais aguentando respirar aquela fumaça.
⁃ Que inferno de país essa Alemanha - Jack comentou. - Mania chata essa de entrar em guerra.
⁃ E dar palco pra maluco - Harry completou.
⁃ Como vocês se conheceram? - Ted perguntou ao grupo de amigos.
O trio riu junto.
⁃ Nós nascemos nessa cidade e vamos morrer nela, então a gente se conhece a vida toda. Fomos pra escola juntos, não fomos, Jim?
⁃ Fomos - Jim respondeu rindo. - Maldito lugar.
Jack se virou para os Morrigan.
⁃ E vocês? São parentes?
⁃ Somos irmãos - Edwin respondeu.
⁃ Sorte a sua de não ter mais irmãos. Eu tenho 7 irmãos. Inferno de gente.
Rapidamente o silêncio baixou sobre o grupo.
⁃ Vocês sabem alguma coisa sobre a guerra? O que está acontecendo enquanto estamos aqui.
⁃ Sim - Jack respondeu. - O prefeito recebe uns telefonemas com informações, não repassa pro povo pra "não gerar pânico", mas o Harry aqui é filho do homem então nós sabemos de qualquer jeito.
⁃ E então? - Edwin perguntou com avidez. - O que está acontecendo?
⁃ Nada de muito importante, pode ficar calmo.
Edwin revirou os olhos.
⁃ Vocês estão muito nervosos - Jack apontou. - Acho que fariam bom uso de uma festinha. Não é, Jim?
O garoto assentiu.
⁃ Deviam aparecer na festa de sábado agora. Vai ter música da boa.
⁃ Tem certeza que não seria estranho? - Ted perguntou. - Nós nos conhecemos agora...
⁃ Estranho? Nada disso! Quanto mais gente melhor.
⁃ Então tudo bem... Estaremos lá.
⁃ Tudo certo. - Jack apagou o cigarro na neve. - Quando estiver na hora nós passamos na casa de vocês. Aliás, onde vocês moram?
Victoria não sentia muita vontade de socializar naquele tempo, ainda mais com pessoas que havia conhecido há pouco tempo e estando no estado de estresse que ela estava. Seria muito deselegante recusar o convite de Jack Wallace, mas parte da garota gostaria que não tivessem aceitado o convite. Quanto mais ela se envolvia com as pessoas de Lifesbridge, mais ela se sentia presa à cidade. Na cabeça da menina, se criasse laços por ali, esses laços a manteriam ali para sempre. E não gostava da ideia de passar o resto da sua vida na cidadezinha.
⁃ Ao menos a mamãe vai ficar feliz que fizemos amigos - Ted apontou. - Embora seja melhor omitir a parte em que eles xingavam e fumavam.
⁃ Todo mundo com mais de 16 anos fuma hoje em dia, Ted - Peter constatou. - Nós é que somos puritanos demais.
Victoria sentiu um calafrio, mesmo estando dentro de casa e coberta de roupas quentes. A casa inteira era fria, deixando-a em uma situação de constante desconforto. Tudo que ela desejava era deitar na sua cama em Willowtree Hall e dormir até o fim dos tempos.
⁃ Mudando de assunto - Victoria começou. - Tem uma coisa que eu nunca entendi. Por que se chama Willowtree Hall se a árvore que temos no terreno é um carvalho?
⁃ Ninguém sabe - Peter respondeu. - Se foi um erro de catalogação ou simplesmente burrice, ou se houve em algum ponto algum salgueiro na propriedade... Enfim, ninguém sabe.
⁃ A vovó devia saber - Ted comentou. - Foi ela quem mandou construir a mansão.
⁃ Oh, você que vá até ela e pergunte a ela. Não aguento nem chegar perto dela.
⁃ Cale a boca.
Mais uma noite em que Victoria deitava na cama e contemplava o teto de seu novo quarto chegava. Era difícil se manter acordada envolvida pelo cobertor quente e pelo sono acumulado, mas a garota estava determinada a não sucumbir. Tinha medo de sonhar de novo.
Escutava os roncos baixos de Edwin e invejava seu sono profundo.
Quanto mais ouvia os roncos do irmão, mais suas pálpebras ameaçavam se fechar.
Quando percebeu, havia perdido a batalha.
Sentiu as ondas levitarem seu corpo conforme boiava na água. A sensação da água fria contra seu corpo o deixava relaxado, como se flutuasse em nuvens.
Aquele não era o velho parque de diversões que constantemente sonhava com. Era um grande oceano, de águas cristalinas e transparentes.
⁃ Está se divertindo?
Victoria levantou o olhar e deparou-se consigo mesma em sua versão infantil. A menininha vestia um vestido cor de rosa e usava duas tranças no cabelo.
⁃ Me desculpe pelo nosso último encontro. Não era a minha intenção que você passasse por tudo aquilo.
⁃ Não tem problema.
⁃ As outras avisaram que você não estava pronta. Por que não as deu ouvidos?
Victoria ficou de pé.
⁃ Porque estou cansada de viver sem respostas. Não faço ideia do porque isso tudo estar acontecendo comigo. Tudo que eu quero saber é o porquê.
⁃ Você saberá quando for a hora. Até lá, precisa ser forte. Nunca foi difícil para você.
⁃ Quem é você?
A menina a olhou e estendeu a mão.
⁃ Pode me chamar de Annie.
Victoria despertou sentindo como se tivesse dormido por mil anos, completamente revigorada.
Era estranho pensar que havia conversado consigo mesma enquanto criança. Annie – quem era ela? O que ela simboliza?
VOCÊ ESTÁ LENDO
Visões Etéreas
Romantizm"E assim prosseguimos, botes contra a corrente, impelidos incessantemente para o passado." - F. Scott Fitzgerald, O Grande Gatsby. Victoria viveu na miséria dos becos de Londres até ser adotada por uma poderosa e rica família, que não lhe doou apena...