Aranhas no Corredor

51 12 144
                                    

Marta fazia seu trabalho diariamente sem reclamar. Pode-se dizer que, apesar do péssimo salário, ela até gostava. Afinal, dez anos carregando cadáveres da sala de cirurgia para o necrotério, por mais estranho e mórbido que fosse a tarefa, eram dez anos. Já havia se acostumando de tal forma, que parecia um trabalho comum como qualquer outro.

Naquele dia em específico, o cadáver que ela levava para o necrotério chamou sua atenção pela beleza, o que fez ela querer saber a causa da morte de tão belo moço. Era só mais um dia de trabalho e somente mais um corpo sendo levado para o necrotério. A única coisa especial neste dia era que Marta nunca havia visto um jovem tão bonito na sua maca. Pensou no que poderia ter acontecido ao rapaz. Tão novo e tão bonito, merecia desfrutar mais a vida. Então, enquanto andava pelo extenso corredor, resolveu pegar o prontuário que seguia junto à maca e ler.

Sua dúvida foi pouco esclarecida, pois, em letras garrafais estava escrito no prontuário: falência múltipla dos órgãos, por causa desconhecida. Em outras palavras, simplesmente o corpo do rapaz parou de funcionar, como um relógio velho que teve sua máquina gasta pelo tempo. Porém, era um jovem. Não fazia sentido algum.

Enquanto andava lendo o prontuário, Marta notou que, aparentemente, pouco havia andado pelo corredor e que a porta de aço do necrotério parecia estar à mesma distância de quando iniciou a caminhada. Olhou para trás e notou que a porta da sala de cirurgia já estava distante. Resolveu então aumentar o passo para chegar rápido ao necrotério, não que estivesse com medo, mas precisava retornar rapidamente ao centro cirúrgico.

Aumentou o passo e não conseguiu ver a distância diminuir, o que a fez, pela primeira vez em dez anos de trabalho, suar frio enquanto andava pelo corredor. O desespero começou a subir pelo seu corpo e resolveu correr até a porta do necrotério. Mas não adiantava, parecia que não saía do lugar por mais que corresse. Olhou novamente para trás e viu ao longe a porta do centro cirúrgico. Seu coração começou a acelerar, enquanto seu corpo suava frio. Sua barriga começou a doer e perdeu o controle do seu corpo, que dava pequenos tremidos de frio.

O desespero começou a crescer dentro de si. Marta então gritou com toda a sua força, mas ninguém veio ao seu socorro. Largou a maca e correu na direção do centro cirúrgico. Porém, teve o mesmo efeito de antes. Era como se não saísse do lugar. Sem forças, caiu sentada no chão e olhou para cima. Foi quando notou que o teto estava tomado por uma espécie de fumaça negra, mas não uma simples fumaça.

Era como se ela tivesse vida. Como se fosse um ninho de aranhas gigantes esfumaçadas tecendo suas teias por todo o teto do corredor. De repente as aranhas começaram a fazer menção de descer do teto e algumas delas pareciam ter uma forma humana um tanto perturbadora. Aquilo era tão absurdo que o grito não conseguiu sair da sua garganta. Marta somente olhava para o teto com a certeza de que havia enlouquecido.

Foi quando uma voz forte e masculina interveio em seu momento de fascínio:

— Garota não se preocupe, elas estão aqui por minha causa.

Marta olhou para a maca e sentada nela estava o jovem e belo rapaz. Ainda pálido e com os olhos salpicados de vermelho misturando-se a sua cor azul. Mesmo depois de morto Marta ainda o achava belo.

Estranhamente ela se sentiu um pouco segura ao ver o rapaz. Por segundos esqueceu as aranhas de fumaça que estavam no teto que vagarosamente desciam pelas paredes, aumentando o que se podia chamar de teia.

— Porque elas estão atrás de você? — Perguntou Marta com a voz embargada pelo desespero.

— Vieram me levar, para um lugar não muito agradável.

— Inferno? — Perguntou Marta.

— Se quiser assim chamar, pode ser. Inferno.

— Isso não pode ser verdade, moço. Eu trabalho aqui há dez anos. Eu nunca vi isso acontecer.

— É porque "aqui" não é o "aqui", que você está pensando. Estamos em uma dimensão entre o seu mundo e o mundo deles.

Marta, fascinada com o ocorrido, olhava ao seu redor, desesperada. Era algo que não conseguiria conceber nem mesmo em seus sonhos mais absurdos. Mas estava ali.

— Mas... o que você fez de tão ruim, para merecer ser punido assim?

O belo rapaz apenas sorriu para ela, numa forma amigável.

— Não fui eu, mas era meu corpo que estava sendo usado.

O homem sorriu novamente, mas desta vez, em melancolia.

— Acredito que a culpa seja minha de qualquer forma. Eu aceitei a presença dele.

"Ele? Ele quem" Marta pensou. Ela parecia mais confusa que antes. Tudo parecia tão absurdo, porém, lá estava ela: em mundo novo, conversando com um morto. A nuvem acima pareceu se mover. Aos poucos, ela viu as aranhas esfumaçadas cobrirem o corpo do rapaz. Fechou os olhos, não conseguia ver o que estava acontecendo.

Ouviu seu nome ser chamado mais uma vez:

— Marta! Marta! Está tudo bem?

Abriu os olhos lentamente e olhou ao seu redor, o corpo do rapaz estava na maca e não havia sinal algum das aranhas esfumaçadas. A porta do necrotério estava bem a sua frente e na sua mão segurava o prontuário do rapaz. Porém, uma nova figura estava no corredor. Era um dos médicos que olhava espantado para Marta.

— Sim, doutor. Me desculpa, eu estava... lendo o prontuário.

— Estou vendo Marta! Mas já faz mais de uma hora que você saiu do centro cirúrgico para levar o rapaz em óbito e não voltou. Ficamos preocupados.

— Não é nada. Me distraí lendo. É que o rapaz é tão jovem e bonito e morreu de causas não conhecidas. Estava pensando no que podia ter sido.

O médico deu um sorriso e falou em tom de desabafo:

— Podia ter me perguntado, eu conversei com o policial que trouxe ele ao hospital. Parece que ele foi encontrado em um galpão abandonado sem nenhum sinal de violência. Desconfiamos que seja envenenamento, mas o legista terá uma conclusão melhor que a minha.

— É uma pena, doutor, um jovem tão bonito morrer assim, envenenado.

— Bom, talvez tenha merecido. O mesmo policial me confidenciou que estavam investigando o rapaz há alguns meses. Ele havia sendo investigado por estupro e assassinato de 7 mulheres. A polícia acredita que ele também é responsável pelo desaparecimento de 7 homossexuais. Acho que 7 é número da sorte dele.

Marta encerrou a conversa com o médico e entrou para colocar o corpo em uma das gavetas frigoríficas do necrotério. Feito isso, pensou no que havia acontecido no corredor e na estória do rapaz, e de como sentiu se confortável com as palavras do jovem. Apesar de todo o ocorrido e de tudo que o doutor lhe disse, ela tinha uma vontade estranha de estar com ele. Marta ficou surpresa e cada vez mais curiosa em relação à vida do homem. Porém, ela sabia no fundo, que o sentimento de compaixão por aquele que já foi um terrível criminoso era, de fato, errado.

Após algumas horas, o médico sentiu a falta de Marta mais uma vez e voltou ao necrotério. Foi quando encontrou a enfermeira caída no chão. O cabelo loiro, agora vermelho, sujo de um inexplicável sangue, formava um estranho heptagrama no chão. Os olhos saltados e a face roxa indicava que ela havia sido asfixiada. O médico correu para tentar salvá-la, porém, ao abrir sua boca centenas de pequenas aranhas saíram pela sua garganta e se espalharam pelo chão.

Não havia mais o que fazer, Marta estava morta.

Contos Noturnos - onde seus sonhos não existemOnde histórias criam vida. Descubra agora