O que acontece quando tudo o que você sempre acreditou de repente se desfaz em tão pouco tempo? Como achar uma forma de seguir adiante?
Eu não era ingênua, sempre soube que muitas coisas funcionavam de um jeito diferente do que me contavam quando estive presa naquela torre. É como se as coisas que ouvia e via não se encaixassem mais nas minhas lembranças.
Fui carregada para fora da mansão dos meus pais em meio a uma rebelião caótica. Pessoas gritavam, jogavam pedras para quebrar as grandes janelas de vidro, atacavam os guardas e eram igualmente atacadas. Mas eu não conseguia ter nenhuma outra reação a não ser me deixar ser levada dali.
Um homem me leva para longe, uma rua alagada e com uma montanha de escombros e animais mortos pela enchente. Ele ofega e está cansado. Me coloca no chão com cuidado.
Então vejo de quem se trata. É o homem que ajudei a se salvar na correnteza.
Ele se afasta, não como se tivesse medo de mim, mas como se para respeitar qualquer espaço do qual eu pudesse ter direito naquele momento.
— Eu falei que não ia esquecer o que fez por mim — ele diz, me encarando. — Só não imaginei que você é filha deles e a...
Ele hesita. Coça a testa e me estende uma mão.
— Sou Bernarde, o escultor. As pessoas não usam mais esses títulos atualmente, mas gosto de preservar memorias do que eu fui um dia.
— Você já sabe quem eu sou... pode me chamar de Lyna, eu acho — tento formular palavras que façam sentido, mesmo com tudo ainda girando à minha volta.
— A gente não pode ficar aqui, Lyna. Temos que continuar andando para longe e nos esconder.
Não quero me esconder. Talvez eu queira, mas não deles. Quero me esconder e fugir daquela estranha manifestação que se apossou de mim.
Pela primeira vez, não quero fugir e sentir o mundo físico. Só quero fugir de mim mesma e me tornar algo diferente e novo. Uma desconhecida e uma nova matéria.
— Eu ainda não faço ideia do que acabou de acontecer — falo, levando uma mão ao rosto. A chuva se intensifica.
— Imagino que não, querida. Mas você vai entender um dia. Só precisamos sair daqui, porque logo vão começar a te caçar e isso não é nada bom.
Bernarde tem uma perna machucada e a camisa manchada de sangue. É um homem gordo e alto, de feições simpáticas e só agora consigo ver que ele tem um desenho em tinta preta marcado na pele, no antebraço. É uma rosa com espinhos. Ele me puxa rapidamente para detrás de uma pilha de escombros.
— Olhe — aponta, tremulo.
Três homens encapuzados e armados com arco e flechas entram na mesma rua onde estamos.
Estão me caçando. Quero me erguer e enfrentá-los, mas também quero paz. Sinto que a segunda opção não me alcançará sem que eu lute.
Bernarde desaparece do meu lado e ouço o som de alguma coisa sendo lançada. O som se intensifica com vidros se partindo. Um trovão ecoa pelo mundo. Os três homens vão na direção do som e desaparecem da minha vista. De repente, Bernarde reaparece, as bochechas vermelhas e os olhos esbugalhados. Me puxa pelo ombro e saímos correndo dali.
Vamos por ruas enlameadas, outras quase impossíveis de transpassar com segurança. Não ouso olhar para trás e correr o risco de ver tanta destruição aumentando.
A palavra vem à minha mente no mesmo segundo em que um trovão seguido por um clarão violento acena no céu obscuro de nuvens pesadas: bruxa! Foi assim que me chamaram. Bruxa. A criadora da maldição. Me pergunto como isso pode ser possível. Como podem ter escondido isso de mim todo esse tempo. Vasculho as lembranças, das mais recentes até as mais antigas. Não lembro de, em nenhum momento, ter tido aquele tipo de manifestação de poder.
A imagem da mulher atingida por um raio me vem à mente também e quero apagá-la. Eu não fiz aquilo. Eu não queria machucá-la em momento nenhum.
Bernarde anda na minha frente. Mancando com o ferimento na perna e cansado. A chuva começa a castigar nossas cabeças. Mas já estamos saindo da cidade, é o que me parece. Descemos uma encosta que parece estar derretendo. O barro escuro gruda nas nossas mãos, pés e qualquer parte do corpo que entrar em contato. Aos poucos vejo alguns sinais de um novo mundo. Ainda estamos na cidade, mas uma parte afastada, reclusa. Ainda mais afastada do que era a torre onde me aprisionaram.
— Talvez não seja um lugar muito seguro — diz Bernarde, me guiando entre as poucas árvores. — De qualquer forma, vai nos dar um tempo para decidir o que fazer... digo, para você decidir o que fazer. Mas saiba que minha casa pode ser sua e sinta-se à vontade...
A casa se revela, acolhida entre duas estatuas gigantes feitas de pedra lisa e cinza. As estatuas são estranhas, mas ao mesmo tempo, reconfortantes. Uma delas está sentada ao lado da casa, os braços em volta das longas pernas de pedra, a cabeça erguida e o olhar voltado para o céu. A outra estatua, que julgo ser um homem, está de pé, semblante sério e as mãos unidas ao redor do peito, como se estivessem protegendo-o.
Corremos para dentro da casa quando a chuva aumenta e tudo ainda é escuro.
Bernarde acende velas, lamparinas e joga os últimos pedaços de madeira seca em um forno. Fico em pé, parada e sem saber o que fazer, como me comportar ou o que dizer. Meu coração começa a acelerar e sinto minhas mãos arderem. Fecho os olhos e me jogo no chão, sentando-me onde estou. Começo a chorar compulsivamente, sem querer ser vista ou reconhecida como uma pessoa. Meu corpo esfria de repente.
— Venha cá — chama o homem que me acolheu. — Eu não posso me levantar agora. Coloquei um unguento na perna, você tem que se levantar. O fogo já tá esquentando, venha!
Não quero me mover. Quero continuar sentada, chorando e me dissolvendo. Quero ficar ali pela eternidade, até me tornar uma pedra. Uma estátua triste e perdida.
— Você pode chorar, menina. Chore e se dissolva como uma cachoeira. Chore como o nosso mundo está fazendo agora, vai tirar uma enxurrada do seu peito. Faça isso e venha se sentar comigo.
A voz calma de Bernarde ecoa pela casa iluminada. Ergo o olhar e me sinto acolhida como nunca me senti antes. Ele está sentado em uma cadeira e ao lado tem outra vazia. Ele sorri e ergue uma caneca para que eu a veja. Bernarde tem olhos serenos. Por que ele está sendo gentil comigo? Por que me salvou e ainda me acolhe dessa forma?
Não quero questionar muito. Me levanto com dificuldade, as roupas daquele pobre rapaz que deixei amarrado atrás de uma carruagem são pesadas e por estarem molhadas, grudam no corpo.
Vou para a outra cadeira, confortável e perto do forno. Bernarde me passa uma caneca com melado quente. Seguro-a como se fosse a coisa mais preciosa do mundo e na verdade, ela é. Me cubro com uma coberta quente e escura, deixo meu corpo relaxar na cadeira. Não dizemos mais nada um ao outro.
Ficamos sentados, ouvindo a chuva no telhado, os trovões e o crepitar das chamas vermelhas no forno diante de nós.
Me sinto segura e ao mesmo tempo, sem chão. A cada segundo que penso em tudo que aconteceu, me sinto mais e mais perdida no mundo e sem saber o que fazer a seguir. É como se balançar em um balanço alto e de repente ter que saltar... você salta, mas não tem nada para te segurar. Não tem chão. Não tem nada.
Fecho os olhos mais uma vez, obrigando as lágrimas a voltarem para o lugar de onde vieram. Seguro a caneca de melado com as duas mãos, o líquido é dourado e doce, aromático. Quero fixar esse momento para sempre. Torna-lo tão eterno e presente quanto o tempo, mesmo que ele só dure o tempo em que estarei viva.
Bernarde adormece na cadeira ao meu lado com a caneca vazia nas mãos.
Fico mais um tempo perto do fogo, me aquecendo. Respiro fundo e me arrumo para ficar mais confortável. Ouço a chuva e sons indecifráveis que me recuso prestar atenção para que não me tirem aquela paz.
No momento, só quero manter essa sensação de segurança e acolhimento preservada como uma joia rara. Ninguém poderá roubá-la de mim.
Um pouco de paz? Ela merece. Ainda temos coisas pela frente. O que está achando da história?Quem realmente é Bernarde? Será que ele é de confiança? Muitas questões e Lyna ainda mais perdida. Não esqueça de deixar seu voto, isso ajuda muito. Obrigado por estar aqui.
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Uma Maldição Entre Nós 💜
FantasyLyna cresceu aprisionada em uma torre. E de acordo com uma antiga profecia, uma maldição pode assolar toda a sua cidade caso ela saia e se encontre com a outra. Do outro lado da cidade, se ergue uma torre igual a sua, e Lyna sabe que naquela torre h...