Capítulo Sete - Olhando para o alto

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Depois de um tempo, de tanto chorar, o soluço vai se tornando um som quase familiar e a única coisa reconfortante.

Um dia novo amanhece. Bernarde não estava mais na cadeira quando acordei.

O fato de eu ainda me sentir viva me faz ter a sensação de que ele não é uma má pessoa. Ouço o dia ecoando frenético lá fora. Respiro fundo, tentando não quebrar o encanto inicial de acordar em um novo ambiente que parece tão brando.

Preciso me mexer. Pensar e agir. De certa forma, sinto que não posso me demorar nesse lugar. E eu preciso desvendar tudo o que tem acontecido.

Sons e estrondos ecoam lá fora e dá para ouvir as gotas da chuva batendo no telhado da casa. Respiro fundo, fecho os olhos e decido sair para fora. O dia está cinzento, encharcado e a brisa que me alcança me deixa fria por inteiro. O sol parece nem mesmo existir por trás das nuvens escuras. Mas a chuva está fraca agora. Estendo uma mão, poucas horas frias molham meus dedos.

Me envolvo nas roupas que já estão secas e saio para fora da casa. Meu pé direito afunda em uma poça. Quero xingar. Olho em volta e tudo está molhado. De repente, algo chama minha atenção, fazendo com que mude de ideia e decido continuar investigando os arredores da casa.

As duas grandes estátuas. Alguma coisa mudou em ambas. É como se tivessem mudado de lugar ou de posição. Fico encarando-as. As duas são maiores do que a casa e do que qualquer árvore, porém estão sentadas, as pernas cruzadas e ombros curvados, como se estivessem cansadas de tanto ficarem naquela posição.

A chuva molha meu cabelo branco, começa a escorrer pelo meu rosto. Não quero sair dali até reparar em qualquer sinal de que uma daquelas estatuas pode se mexer. Um raio atinge uma árvore não muito longe de onde estou parada, animais se agitam ao redor e a chuva se intensifica.

Eu continuo parada... Encarando. As estátuas não se movem.

Volto para dentro da casa de Bernarde e tranco a porta. O frio toma conta do meu corpo. A respiração descontrolada, mãos trêmulas. Será que eu causei aquele raio, assim como aconteceu com a mulher na mansão?

Tento empurrar esse pensamento para longe de mim. Não quero que o fantasma dela volte a me seguir. A única coisa que desejo é poder me livrar dessa coisa soturna que pesa em meu coração.

Ouço estalidos pela casa. De repente parece que ela está se mexendo, acordando de um sono secular. Sinto o chão sob meus pés balançando como se fossem placas de gordura derretendo em uma frigideira quente.

— Mas o que... — Antes que pudesse completar, sou jogada contra a mesa.

Panelas caem, vejo todos os objetos da casa de Bernarde ganhando vida em um estardalhaço assombroso. É um terremoto? Definitivamente não duvido mais sobre o fim do mundo.

Tento me desviar de facas afiadas que vêem em minha direção. Panelas já amassadas, uma cadeira acerta as minhas costas. Me arrasto arfando para o canto da casa. Copos e toda a louça se quebram. Preciso saber o que está acontecendo, só que mais do que nunca, não posso morrer ali. Se Bernarde voltar e encontrar a casa daquela forma? Onde ele está? Me levanto e vou em direção a porta, a poltrona onde ele se senta está virada de um jeito desastroso, com certeza não aguenta mais nem que um gatinho deite sobre ela. Meus dedos tocam a maçaneta, não consigo abrir ainda. O terremoto esquisito segue mais forte. Me desequilibro e bato o joelho em uma quina da parede.

— ME TIREM DAQUI — Começo a gritar, como se acreditasse mesmo que um público sádico estivesse lá fora, assistindo eu ser sacudida como um passarinho trancafiado em uma caixa de papelão. — Me deixe sair daqui!

Sou vomitada de repente para fora da casa, como se fosse uma comida difícil de digerir. Não consigo enxergar nada com nitidez. A visão embaçada, minha garganta doendo de tanto gritar e a dor crescente no meu joelho me deixam confusa e irritada.

Uma chuva fria e pesada ensopa o mundo.

Ouço um grito estridente vindo das nuvens cinzas. O som faz minha pele toda arrepiar e meu estômago revirar. Não sei se estou pronta para enfrentar o que for que estiver a caminho.

Então a coisa se joga para fora das nuvens como uma flecha com alvo certeiro para cima de mim. Sou pressionada contra o chão. A gritadeira pisa sobre a minha cabeça, as patas de pássaro gigante sufocando minha respiração. Tento me debater, sinto que estou ficando sem forças por falta de fôlego e a criatura grita contra os meus ouvidos e bate suas asas contra as minhas costas. Mais alguns segundos e posso não me mover mais. A lama entra pela minha boca, misturando-se com um líquido viscoso e morno, tem gosto de ferro. Meu sangue se mistura nessa luta com a lama preta.

Aperto bem meus olhos. Não vejo nada além de uma escuridão que por um momento parece ser tão agradável. Eu poderia ficar ali; naquela escuridão onde não faz frio nem calor, não chove e não faz sol. Parece um lugar agradável para se estar. Sinto então algo quente perfurar minhas costas com violência e abro os olhos para uma claridade ofuscante. Um raio nos atingiu. A gritadeira cai sem vida, torrada com um fio de fumaça saindo de suas costas de penas molhadas e chamuscadas. Sinto que fui atingida, mas a dor vai passando. Ainda assim, não tenho forças para levantar dali.

Se o mundo encher até transbordar, serei levada com as águas para longe. Meu corpo vai flutuar acima das casas e das torres e eu tocarei o céu.

Não foi para isso que lutei para me ver livre daquela torre. Não para desistir. Me arrasto, sem olhar para trás. Sem olhar para a casa de Bernarde, o bom homem que me acolheu. Não posso colocá-lo em risco mais uma vez. Continuo me arrastando, cravando no chão encharcado minhas unhas e puxando meu peso para longe dali. Um dia quero voltar a ver Bernarde. Agora é um momento que preciso enfrentar sozinha.

Em um trecho de floresta, me recolho sob folhas enormes, que me protegem da chuva e do frio, ainda que eu sinta a temperatura baixa castigando meus ossos, é melhor do que nada. Fico encolhida, abraçada ás próprias pernas e mentalizo que tudo isso vai passar.

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