Capítulo seis - Ressurreição

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Sempre acreditei que segundos antes de morrermos, nosso cérebro cria uma imagem do que nós acreditamos ainda em vida. Algumas pessoas poderiam se enxergar indo ao encontro de algum deus, sentados em um lindo jardim... São inúmeras crenças e possibilidades. Nosso cérebro é capaz de inventar milhões de situações, isso é uma das coisas que nos diferenciam dos outros animais. O que me fez pensar sobre Giselle. Teria ela sido criada por uma experiência traumática de quase morte? Quando estamos em perigo, todos os nossos instintos primitivos ultrapassam a racionalidade. Eu acho que sim. No fim, vivemos dia após dia lutando para sobreviver, adiando o inevitável.

Minha mãe conheceu meu padrasto quando ela ainda estava grávida de mim, sou filha única de pais problemáticos. Ela cresceu achando que quando casa, a esposa tem que acatar tudo que o marido faz ou fala e que ele está no direito de homem de cometer os erros que bem entender. O que fez com que eles me criassem para pensar da mesma forma, não funcionou muito, até que eu conheci Eric. Eu teria me livrado dele na primeira vez que me maltratasse, se não estivesse condicionada a pensar que aquilo era normal.

Quando eu tinha treze anos, Rogério começou a frequentar meu quarto. Começou com carícias pelo meu corpo e, no fim, estava passando seu pau nojento na minha boca. Eu ficava dura, mal respirava. Minha mãe nunca o enfrentaria, então sofri calada por três anos.

Em uma tarde, eu estava na escola e um menino da minha sala passou a mão na minha bunda. Traumatizada pelo meu padrasto, enfiei um lápis no seu braço, o que me fez ir parar no Conselho Tutelar. Conversando com a psicóloga, contei tudo que passava em casa. Até hoje não entendo porque me trataram como descontrolada e o menino que me assediou foi amparado como vítima. Mas eles me ajudaram, foram falar com minha família. As coisas ficaram muito sérias e, com medo de prejudicar minha mãe, preferi dizer que menti.

Meu sonho de ser médica surgiu quando eu ainda tinha nove anos e salvei um colega de classe de morrer engasgado com um pedaço de borracha. Mas tenho me perguntado se realmente faria medicina hoje, já que o dever dos médicos é salvar vidas, não dar fim a elas. O que eu faria em uma situação como essa? Onde uma jovem solitária e sem família está lutando pela vida.

Escuto bipes e pessoas conversando, parecem sons típicos de hospital, sinto cheiro de éter, é meu cheiro preferido. Meu corpo parece estar com círculos colados em todo o tórax e tem algo fofo enrolado no meu pescoço que dificulta para respirar. Pela primeira vez, eu estava verdadeiramente sozinha, não havia aquela voz alucinada por morte na minha cabeça.

― E essa daqui? ― ouvi a voz de um homem.

―Helena Cardoso, vinte e cinco anos, costelas quebradas, lesões múltiplas, hemorragia interna, um arranhão na córnea e perfurações de chumbinho no ombro ― senti quando ele tocou na ferida. ― A encontraram presa em uma árvore bem no meio da descida do mirante. Foi transferida para cá há quatro dias.

― Algum familiar? Qual foi o motivo da transferência?

― Encontramos a mãe no Rio de Janeiro, ligamos, mas ela disse que não faz ideia de quem a menina seja. As maravilhas da maternidade. Uma moça, sotaque forte, advogada, se ofereceu para pagar as despesas hospitalares, então a trouxeram para cá.

Ouvi o bipe ficar cada vez mais rápido, depois um líquido frio penetrou minhas veias e tudo ficou escuro.

Finalmente eu estava acordada, depois de nove dias. Cada pedaço do meu corpo dói, lateja ou queima. Pedi informações sobre a tal advogada, mas disseram que ela preferia se manter no anonimato. Qual é? Só conheço uma pessoa com essas características, pra que o mistério?

Mais uns dias em recuperação e eu fui liberada para voltar ao meu apartamento em Copacabana. Queria esquecer de tudo que aconteceu, seguir em frente. A Giselle parecia ainda estar em coma. Então fiz um café, sentei no sofá e liguei a TV.

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