Capítulo 9 - Hereditário

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Eu já ouvi dizer que o DNA é uma coisa forte, passado de geração a geração, está tudo interligado. Alguns herdam coisas boas de seus antepassados, dons, talentos, alguns herdam maldições.

Sentada ali segurando o telefone, um vidro me separando daquele homem que era mais um no sistema penitenciário. Eu me vi. Os traços do rosto eram tão familiares que eu me imaginava de frente a um espelho. A única coisa que me fazia reconhecer aquele homem era uma foto antiga que achei nas coisas da minha mãe. 

Ali percebi que tudo que eu sabia sobre meu pai era mentira. Eu nem sequer imaginava que ele estava ali, que eu ainda tinha um pai. Minha mãe ficava bem agressiva quando eu o mencionava casualmente, curiosa. 

— Por que você nunca me procurou? — minha voz embargada saiu quase como um sussurro.

— Ela nunca permitiu.

Eu já sabia de quem se tratava.

— Eu estou aqui por causa da sua mãe, Helena. Você precisa ficar longe dela. 

— Calma aí. Você não pode chegar na minha vida dizendo que está na cadeia por causa da minha mãe e me dar instruções do que devo ou não fazer. Eu sei que ela é uma completa megera, mas o que poderia ter feito pra te colocar nesse lugar?

Ele abaixou o telefone e também seus olhos, a respiração se tornara lenta e curta, seu peito mal se movia. 

Quando tornou a falar, sua voz era triste e sombria.

— Conheci sua mãe há muitos anos em um bordel, não sei mais se é assim que é chamado hoje em dia. Ela era a mulher mais linda que eu já havia visto na vida. Nos envolvemos por meses, como cliente e profissional. Então ela engravidou de você. 

— Cala a boca. Isso é tudo mentira — gritei.

— Olha o tom de voz, garota — disse o guarda que estava tomando conta dele. 

Eu bati o telefone e me preparei para levantar. Mas eu conhecia bem a minha mãe. Ela com certeza guardaria um segredo como esse.

Peguei o telefone e pedi que continuasse a história.

— Eu fiquei maravilhado com a notícia. Mas sua mãe nem tanto. Disse que gostava da vida que levava e que eu, que não era rico, não daria a mesma vida para ela. Nessa altura eu estava tão apaixonado que faria qualquer coisa para estar com ela e com você. A convenci de apresentá-la a minha família e pedi que viesse morar comigo, sob o acordo de que ela deixaria você comigo quando nascesse e ela voltaria para a vida no bordel. 

Minha cabeça a essa altura estava girando, eu me sentia enjoada e tonta. Como assim eu iria ser criada por meu pai? Um detento, um desconhecido. 

— Na ligação você me disse que ela matou sua família — lembrei. — Ela pode ser um ser humano desprezível, mas uma assassina? 

Então lembrei de mim. Uma boa filha, boa aluna, tão traumatizada e cheia de assassinato nas costas. 

— Eu vou chegar lá, prometo. 

Mas o guarda o interrompeu, era o fim da visita.

— Não, por favor, eu preciso falar com ele — implorei, desesperada. As mãos nos vidros quase em súplica. 

Mas não adiantou. Eu teria que esperar quinze dias para falar com aquele homem desconhecido mas uma vez, aquele homem que era meu clone do sexo oposto, meu pai.

Deitada no sofá eu navegava pela internet quando uma notícia prendeu minha atenção. Uma adolescente foi encontrada morta em um quarto com madeira nas janelas, arranhões nas paredes, um balde com fezes e sinais de estupro e agressão física. Aquilo despertou algo dentro de mim. Eu olhava aquela foto do quarto e via meu corpo deitado ali naquele colchão imundo. Mas que infeliz coincidência era essa? Senti um arrepio na espinha. 

Abri o teclado de chamada do meu celular e pensei em ligar para minha mãe. Eu não aguentava mais tanta dúvida. Mas eu poderia colocar tudo em risco. Poderia acabar de vez com a chance de saber quem eu era e quem eu poderia ter sido.

Mesmo assim digitei seu número e deixei chamar.

— Quem é? 

Até para atender o telefone a arrogância saltava por sua voz. 

— Onde está meu pai? — perguntei com firmeza.

— Helena? Você ainda está viva, seu vermezinho? 

Eu desabei. Sabia que ela me odiava, mas ainda assim doía. Saber que ela torcia que eu estivesse morta, que não sentiria minha falta, que sequer procurou por mim.

— Eu vou descobrir toda a verdade, e quando isso acontecer, eu vou acabar com a sua vida, sua desgraçada — disse entre os dentes.

— Você pode tentar.

Só ouvi o som da chamada encerrada.

Fiquei ali, com taquicardia, minha boca e mãos formigavam, a sensação de desmaio me cegava. Senti que já era tarde demais pra controlar, ela estava ali. E estava com sede de sangue.

Para adormecer Gisele, só me concentrava no caso que havia visto há pouco. Tinha duas semanas para achar o assassino. E foi o que fiz por quinze dias, até descobrir que ele havia sido encontrado e estava em uma clínica psiquiátrica. 

Tentei contato com a clínica, mas eles se recusavam a me dar qualquer informação sobre aquele homem.

Chegou o dia de encontrar meu pai, finalmente algo para dar sentido a minha vida medíocre.

— Por favor, sem essas firulas de pai e filha. Me conte o que você sabe e poupa o pouco tempo que temos.

Com um aceno de cabeça, ele começou.

— Quando eu contei pra minha família sobre sua mãe e você, eles enlouqueceram. Disseram que eu estava louco e que jamais aceitariam o filho de uma prostituta. Exigiram que ela abortasse e sumisse da minha vida. Mas eu estava disposto a lutar por vocês. Eu morava com meus pais e minha irmã. Aluguei um apartamento minúsculo e fui morar com sua mãe. Mas minha vida só piorou depois disso. Ela continuou trabalhando na noite até os quatro meses de gravidez, usava cocaína, chegava de manhã completamente bêbada, cheguei a interná-la em uma clínica de reabilitação, mas ela fugiu, voltou um mês depois. Disse que ia sossegar até você nascer, me entregaria o bebê e iria embora. E assim ela fez. Quando você nasceu, ela fugiu do hospital e deixou você lá comigo. Minha família acabou me aceitando de volta e vivemos bem durante quatro meses, até que ela voltou. Tinha arrumado um velho rico e o contou uma historinha triste sobre ser pobre e não conseguir criar a filha. Que eu tomei você dela e ela queria você de volta. Claro que entrei na justiça. Mas, mesmo com todo o histórico da sua mãe, ela conseguiu a guarda. Quando eu descobri como ela tratava você apenas como seguro pra se manter casada com o velho rico, eu recorri na justiça pela guarda. Foi quando ela acabou com a minha vida.

— Fim da visita, desliga — a voz do guarda quebrou a bolha em que eu estava. 

Ainda fiquei uns segundos sentada ali, mal respirava, assisti o guarda levar meu pai enquanto ele, algemado, tentava olhar para trás preocupado.


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⏰ Última atualização: Apr 02, 2023 ⏰

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