MAKTUB

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Na noite em que se iniciava o ano do dragão, o prantear de um bebe recém nascido ecoava pelo quarto da imperatriz. As lágrimas despejadas por ambos eram claras como aquelas que caíam sobre a terra e os trovões lá fora eram mais silenciosos do que o pequeno lamento.

 A mãe que segurava a criança com custo, em seu último fio de vida mal podia vê-lo em seus braços, sua força se esvaziada entre suspiros contados, em uma última prece. 

Uma das parteiras se aproximou pegando a criança, como um último presente, a imperatriz puxou alguns fios de seu cabelo escuro, o enrolando no pulso pequeno

– Uma mãe inútil que não poderá cuidar de você, aceite meu presente.

Se iluminando como fogo, os fios se enraizaram na pele, dourados como ouro em pele branca e macia, uma lembrança para aquele que era tão pequeno mas já carregava o fardo da morte. 

– Uma flor brilhou em meus sonhos e floresceu no meu ventre, seu nome será Hua. Meu pequeno Hua – a mulher dizia com dificuldade deslizando o polegar pelo rosto do bebê, as duas parteiras ajoelhadas encostaram suas testas no chão e aquela que segurava o bebê apenas abaixou sua cabeça – Mandem tocar o sino, avise meu marido que seu filho nasceu, minha pequena flor matará o dragão e irá subir aos céus.

Gravado como uma profecia, um último estrondo veio arrepiado todos que pisam em terra. No entanto, o pequeno Hua não chorava mais, seus pequenos olhos negros brilhantes apenas admiravam o belo rosto de sua mãe que se tornavam cada vez mais pálido, sem saber que aquela que mais o amava, seria a única que nunca veria novamente. 

No corredor fora do quarto um mensageiro foi avisado, correndo enquanto descia os quinhentos degraus do palácio tropeçando em seus pés ou escorregando no molhado, em direção a grande torre com o sino dourado o temporal se acalmava vagarosamente. Toda a cidade permanecia silenciosa com apenas o cair forte das gotas batendo contra as paredes, transbordando o rio.  

Horas atrás, no momento em que o parto deu início, com uma ordem imperial o povo foi avisado e se puseram a esperar por notícias em suas casas com corações carregados de aflição. O príncipe que mataria o dragão era uma criança muito aguardada, todos ansiavam por aquele que os protegeria, mas quem ousaria carregar uma criança que não poderia ficar em paz nem mesmo no ventre ? Tão jovem e carregando um fardo tão grande 

Então, desde as ruas que cercavam o palácio até os portões da cidade, e até mesmo os soldados que guardavam o topo da muralha, todos permaneciam em um silêncio ansioso. Quando então veio o primeiro bater: 

O Blém Blém do sino ecoou correndo milhas ao longe, cortando o silêncio como um dos raios no céu. 

– Mais um, mais um - um soldado rogava em pé no ponto mais alto da muralha, batendo o calcanhar nervosamente, sendo atingido pelas gotas congeladas. 

Seu desejo não era apenas seu, um deus poderia atender todas as preces iguais que subiam para os céus nesse momento, mas os pedidos contrariavam sua própria vontade, então prosseguiu  fazendo-se surdo. E então, como um carma instantâneo, outras duas badaladas retumbaram. 

Blém Blém 

Era um menino, oficialmente anunciado. Todo o povo suspirou aliviado, um menino nascido sobre tormenta de uma uma tempestade, quando o céu parecia desabar sobre a terra, o mais grandioso filho da mais honrável senhora, cresceria forte como um tigre e gentil como uma borboleta, no futuro traria o coração do grande dragão branco. 

O rio que passava no meio da cidade, nascia como um enorme lago no pátio do palácio e seguia até que serpenteasse por entre as montanhas. Não havia cor e apenas refletia o que estivesse acima como um espelho, tão negro quanto o céu noturno onde estrelas pareciam estar no chão, ou claro quanto o sol do meio dia que brilhava sobre a água.

 A chuva o tirou da paz por horas, mas agora ele a abrigava com tranquilidade novamente. Aos pés de sua nascente, o imperador acendia uma lanterna em forma de flor com suas vestes encharcadas, em meio ao frio a minúscula chama era o único calor que esquentava sua pele e que infelizmente não atingia seu coração. 

A lanterna deslizou para fora graciosamente, passando pela ponte até que chegasse na cidade onde a correnteza a levava sem pressa. Sendo soltas por várias mãos, muitas outras começaram a brilhar sobre o rio seguindo aquela que liderava o caminho. A chuva tempestuosa de antes já havia se transformado em uma leve garoa que quase não podia mais perturbar os leves traços deixados pelos objetos.

Logo a multidão de lanternas florais correram e se perderam pelas montanhas, seguindo seu próprio caminho, como vagalumes elas correram até que o dia nascesse e se tornasse noite novamente, o rio era infinito e o fogo sagrado não se apagaria até que chegasse em seu destino, cruzando florestas altas e terrenos áridos. Depois de percorrer esse longo caminho, um enorme templo pelo qual a água passava em seu meio apareceu. 

Lentamente o lugar desprovido de luz alta,  se tornava iluminando como o dia, mostrando suas paredes com pinturas e pilares que tinham certa beleza. A construção tinha cores em branco, vermelho e amarelo, além de ser coberta por flores nesses mesmos tons. 

Na água cristalina, uma figura humana estava deitada na água sete metros profundos abaixo, seu corpo flutuava como pétalas perdidas de seu jardim. Abrindo seus olhos dourados depois de um longo sono, ele avistou a estranha movimentação na superfície imperturbável, curioso ele deslizou suavemente contra a água e emergiu criando uma pequena movimentação, mas o suficiente para que as lanternas se afastassem um pouco mais. 

A luz alaranjada das chamas iluminavam seu rosto bonito e após muitos anos ele sentiu uma intensa sensação de calor confortável, uma das lanternas bateu contra si e a pegando em suas mãos ele admirou a linda flor que se apagava fechando-se novamente. 

– Então a Imperatriz deu à luz um menino.

As lanternas dispersadas sobre a água não andariam mais, com um movimento de sua mão a as organizou em uma longa linha reta que se estendia até onde os olhos alcançaram, boiando, as chamas se apagaram e a sensação calorosa de antes também desapareceu. 

Aquela em sua mão há muito já havia sido levada. Se deitando sobre o rio como uma das lanternas, seu corpo deslizou e seus cabelos flutuavam como algas. 

– Estou cansado - disse inaudível, deixando que a água o tratasse como quisesse – Torço para que venha logo. 

E assim, aquele que do fundo emergiu, para o fundo retornou.



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{Maktub:  "Já estava escrito" ou "tinha que ser", está diretamente ligado ao destino, traz certeza de que tudo o que ocorre na vida de alguém, já fora escrito nas estrelas}
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